terça-feira, 26 de agosto de 2014

Espanhol


Juro ter ouvido, entre suspiros fundos e lágrimas fundas, sons de castanholas envolvidos em brumas de sangue. Impressão ou sentimento engolido por aquelas fotografias sépias de lembranças guardadas nos primeiros anos de vida.

O que havia em seu pequeno quarto de mundo, avesso às tristezas de final de vida? Ninguém descobrira, talvez, porque tão trancado, se, agora há pouco, plantara seu mundo tão distante do chão empedrado onde brotara, para dançar, sobre uma mesa, um bailado espanhol ensopado de alegria. Nem descobririam filhos, netos, sobrinhos, parentes, amigos, desconhecidos, os porquês das tramelas no coração perto do fim.

Nesses dias de antes, lembravam, ninguém tinha sua destreza ao descarnar um animal, açougueiro de alma. Ninguém!, espalhavam a todos os ventos com a força do exagero. Ou sua extrema sutileza, quase um bisturi, ao manipular um canivete amolado em direção aos bagos de um cavalo ou outro que estivesse a ser capado. Esporas tingidas, limpava o suor no próprio sangue e invocava deuses. Parecia imolar com pena, parecia sentir a dor, mas sem dó.

Nesses dias de antes, lembravam ainda mais, ninguém desafiava o trabalho como um mouro, descendente de mouro, vindo de onde vieram os mouros, mouro enfim, raízes fincadas em um chão arenoso.

Além das orações do trabalho, cultivava a religião dos céus, longe dos templos e dos seus administradores. Rezava como crente, para dentro, cultivando o terreno do peito, os músculos e as carnes. E o silêncio. Também comemorava os resultados do trabalho, taças borradas de vinho e de paixão, os olhos atiçados na fogueira do futuro.

Por que, então, o lento fechar de janelas ao mundo, sentimentos recolhidos, ouvidos moucos ao vento que sopra manhoso na areia fina de uma terra quente, onde, agora há pouco, ele estourara balas de revólver, cacos de garrafas, estilhaços de silêncios, pedaços do céu?

Poucos tentaram e ninguém soube me explicar porque de embaixador da alegria, carteiro de felicidade, ele mudou, assumindo fantasmas a mim nunca apresentados, distribuindo a poucos, quase nenhuns, segredos, mistérios, pequenos acordos ou fuxicos de vida.

De festivo passou a ser motivo da festa. Alvo da sanha. Inclusive de pequenos infames, que nada ou quase nada sabiam de sua vida, algozes que vieram depois cobrar a felicidade que ele havia proporcionado a seus avós, pais ou a ele mesmo, aos seus, a desconhecidos. Berravam apelidos, as maritacas pintadas de anuns. E ele arrastava o resto de vida pelas ruas, fechado em seu quarto de mundo, à espera da volta, quem sabe, aos braços da mulher, com cheiro das videiras e das oliveiras em seu colo, camomilas esparramadas em algodão das batas.

Enchia os bolsos de bitucas, cigarros murchos, para, talvez, tragar o resto da brisa que soprava no mar que o trouxe de outras costas, bruto sonhador de aventuras. Se ainda pudesse, além de queimar os lábios com as brasas, queimá-los com o vinho da amada, casa de saciar a fome de outras labaredas, expurgar as dores e benzer a vida de esperanças...

Seus cabelos renascentistas, impróprios para um analfabeto de letras enterradas em sua origem no século XV, cresceram em tufos, espalhados pelas sobrancelhas, ouvidos, cabeça, braços, colhidos pelo tempo como animal no matadouro.
Nada de terno. Animal, esfaqueavam em desprezo as maritacas. O viver, espalhado em dezenas, como os fios de seu cabelo, virava cinzas nesses dias de antes, nos muros, nos bares, nas calçadas, no abandono, no cheiro acre de urina no quarto apertado de solidão, sem explicações.

Juro ter ouvido sons roucos de tourada, bois chifrando o toureiro e ele se esquivando, olé, um bailado no tablado de uma mesa ou na sujeira de um chão nu, copos partidos ao meio, cheiro de pólvora, olé, saliva pastosa no canto da boca, um poema despetalado, flores amarelas e vermelhas e janelas se fechando, para sempre, no pedaço rubro da tarde.


Nilson Monteiro

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