sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Cão sem plumas


A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.

Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos povos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.

João Cabral de Melo Neto

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Londrina


Nesses meus tempos,
que junto sem contar idades
nem me preocupar
com tradições ou preconceitos,
sempre fui meio senhora, meio menina,
meio assim campo aberto aos carinhos,
mansos ou violentos,
ateus ou religiosos, daqueles que
amassaram minha carne fértil, viscosa,
cor de fogo, cor de desafio, cor de todas as cores.

Eu os convidava estirada no espigão,
um barreiro vulcânico:
venham a mim de onde vierem,
a cavalo, a pé, navegantes,
pelos matas ou águas barrentas,
príncipes, lavradores, familiares ou errantes,
pessoas boas ou vida-tortas,
venham.

Os primeiros vieram,
levantaram ranchos de palmito,
fincaram estacas, abriram talhos
e me deram adjetivos
os mais estranhos, os mais loucos
como a febre de amor que sempre lhes causei,
do primeiro luar até hoje:
maliciosa, perturbadora, receptiva,
visguenta, rude, roxa, vermelha, linda, suja...

Apaixonaram-se, e tanto,

os primeiros e muitos outros,
que podia eu fazer a não ser retribuir
com mais pigmentos do coração?
A não ser lhes sujar as barras das calças, das saias
das casas e do fundo de suas almas
entregues a este louco amor?Primeiro, me vestiram de algodão
depois, me vestiram de café florido,
fiquei sempre muito bonita,
com o suor e as lágrimas daqueles
que regavam meu chão ou
daqueles que contavam lorotas
em minhas noites ébrias de paixão
ou daqueles que sangravam dores

Fiquei sempre linda,
caipira ou senhora do mundo,
fui sendo feita na velocidade dos anos
fui sendo eu, meio assim sem cronologia:

nos varais vermelhos,
na poeira endiabrada,
na meleca das maças,
no palito de limão,
no barro do lago,
no ferrão dos marimbondos,
na xepa da feira,
nas cicatrizes do capotão,
no frêmito dos gols,
na gritaria das cigarras,
na angústia do poente,
no morno do vento,
na ponta do canivete,
no fio da navalha,
na sanha da faca,
na paçoca de amendoim,
no salgado da pipoca,
no doce da tubaína,
no riso do circo,
na palhaçada dos meninos,
no encardido das unhas,
na farra das matinês,
nos chifres dos rodeios,
nas perobas e no aroma verde das matas,
na penugem que me sobrou do bosque,
no catecismo ensebado,
na música caipira,
na rouquidão do rádio,
no rangido líquido do poço,
nos concursos de emissora,
na luz das manhãs,
no azul estupendo dos dias,
na pintura das nuvens,
na arte celestial dos germes,
no badalar dos sinos,
no limbo dos paralelepípedos,
nas curvas lanhadas dos postes,
nas cercas e nos muros,
no perfume do beira-de-linha,
na lâmina do capim,
no latifúndio do espaço,
no bico de anu torrado,
na bosta das mulas,
no roubo de melancia,
na dor do tiro de sal,
no ardume da ferida,
no podre do dente,
no arame farpado,
na borracha do estilingue,
na caixa de engraxate,
no alvo das vidraças,
no medo do cemitério,
nos mistérios da zona,
nos segredos das escolas,
na alegria dos balaios-de-puta,
na vadiagem das noites,
na buzina enferrujada dos calhambeques,
na meninice das festas,
no laquê dos cabelos,
no coração das paixões,
nos temperos humanos,
na loucura dos sentimentos,
no tomate das lâmpadas,
na gritaria dos pardais,
na languidez dos córregos,
no esguio dos lambaris,
na búrica da terra,
nas mãos tingidas,
nos barracões entupidos de sacos,
nos sacos sujos da venda,
nas línguas de açúcar cristal
na goma arábica das figurinhas,
na cola de farinha de trigo,
no escândalo das matracas do padeiro,
no berreiro das maritacas,
no corte do açougueiro,
na preguiça da carroça,
no litro de leite de vidro,
no estalar de bombinhas,
no olhar imperial do relojão,
no sangue do dedão arrebitado,
no coleirinha na gaiola do pasto,
na gordura do bar da rodoviária,
nos rachados dos calcanhares,
na chuva roxa,
no grude do barro,
na mata-junta magrela,
na sola da botina,
no apito metálico e dolorido do trem,
nos trilhos oleosos,
no corte de aço e dormentes,
na liberdade dos quintais,
na tosse braseira do cigarro,
nas dores dos hospitais,
no crepitar das fogueiras,
nas minhas tribos reunidas,
na molecagem da vida,
na saliva do lambe-lambe,
na sépia das fotostanto e tanto e muito mais
eu trago no peito,
plena de substantivos e adjetivos,
agora informática e na modernidade
nos olhos rubros e ardidos de saudades
eu trago minha memória
congelada nas imagens do papel

Não tenho sobrenome
nem referência,
minha mistura de gentes e línguas
é uma santa e provocadora querência.
Só tenho um nome
e uma sina:
ser pra sempre menina,
tendo oito ou oitenta –

Nilson Monteiro

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Entre...


Entre o que você é e o que você gostaria de ser. Entre o que você é e gostaria de parecer. Entre o que você quer e o que diz querer. Entre o que você quer ser quando crescer e o que deixou se perder. Entre o que você vê e o que não vê. Entre o seu olhar e o que suas mãos podem tocar. Entre tudo o que você vai esquecer das lembranças que nunca irão se apagar. Entre o muito rápido e o quase devagar. Entre o desistir e o perseverar. Entre o querer e o desejar. Entre a repulsa e a bondade. Entre o tempo e a idade. Entre o futuro e a saudade. Entre o esquecido e o perdido. Entre este momento e o seguinte. Em algum lugar existe um meio termo. Entre o meio e o termo. Meio é entre princípio e fim. Termo quer dizer prazo. Entre a sua ousadia e a paciência nossa. Entre o que você gostaria e o que você gosta. Entre o autor e a obra. Entre o desperdício e a sobra. Entre construir - difícil. E destruir - fácil. Entre a triste verdade e a alegre mentira. Entre a mulher e a menina. Entre o que cega e o que fascina. Nas entrelinhas. Entre a aparência e o engano. Entre o sonho e a ilusão. Entre o sim e o não. Talvez. Entre a minha e a tua vez. Entre o que você fez. Entre o que você deixou de fazer. E o que eu nem posso dizer. Aqui entre nós. Entre mentes, entretanto, entretendo, entendendo que entre eu e mim, entre nós dois e vocês. Entre! Ainda que seja a porta de saída, entre sem bater.


Pedro Bial

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Maturidade


A vida vai passando,
dias e noites..
Vamos vivendo cada minuto
movidos pelos pequenos casos e acasos
Chega um dia...
em que vc começa a perceber que mudou.
Aquela paixão avassaladora
deu lugar a uma calmaria...
Seu corpo já não clama por desejos...
sua alma , outrora inquieta...
agora repousa nas tardes
Noites insones, antes embaladas por pensamentos ardentes...
hoje se consome em detalhes domesticos.
Falta glamour
Falta desejos
é a maturidade...

Luciete Valente

domingo, 23 de novembro de 2014

Nenhum amor escapa impune


Deixa-me perguntar se te
pareço tão assustado assim. 

Não me sinto deslocado, talvez curioso, mas
nem surpreso. Algo em ti me puxa
sempre ao sentimento, mesmo antes de
te conhecer, lembras-te, uma propensão para te tratar bem, cuidar, vulnerabilizar os meus modos, recusar admitir que também eu sou capaz de crueldades quotidianas e
impunes. Queria conversar contigo
sobre o Nelson, que foi ver as coisas a
arder fotografando a própria
pele. Queria falar-te da Isabel e de como
choramos juntos, muito maricas, quando
nos correm mal estes amores ou, pior, a
nossa amizade. Esta noite sonhei contigo e
achei graça dizer-te que cheirava mal
na nossa cama. Que me incomodou a luz a entrar pela persiana por fechar. Que ouvi com dor o orgasmo da vizinha de baixo.
Queria que soubesses que também eu
poderia ter ardido para o Nelson
fotografar. Queria que soubesses que
também poderia parar de chorar pela
Isabel. Queria que soubesses que o faria
exclusivamente para arruinar o meu coração, se fosse a tua vontade e com isso te deixasse em paz. Faria qualquer coisa, ainda que quisesse morrer a seguir, faria qualquer coisa que, por um instante, te pusesse
a pensar em mim.

Valter Hugo Mãe

sábado, 22 de novembro de 2014

A Mulher que Passa


Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!

Oh! Como és linda, mulher que passas
que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pêlos leves são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Porque me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontrava se te perdias?

Por que não voltas, mulher que passa?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida
Para o que sofro não ser desgraça?

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!

No santo nome do teu martírio
Do teu martírio que nunca cessa
Meu Deus, eu quero, quero depressa
A minha amada mulher que passa!

Que fica e passa, que pacifica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como a cortiça
E tem raízes como a fumaça.

Vinicius de Moraes

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Quando


Quando você me toca,
Eu sinto o coração bater...
Acelerado, idiota,
Querendo te amar também.
Quando você me abraça,
Eu fico sem saber o que faço;
Fico gelado e quente,
Ardendo de frio e calor...
Quando você beija,
Eu vou para as estrelas;
Morro de amor e paixão,
Grito, ou fico calado,
Apaixonado!
Aprisionado no teu coração.
Quando você vai embora,
Morro de saudade;
Fico esperando, contando as horas,
Fora de circulação...
Choro e te procuro,
Na chuva, no sol, no escuro...
Na rua, atrás do muro;
Na lua e em qualquer lugar.
Sofro com tua ausência,
Fico alucinado!
Calado e chateado,
Aborrecido e tristonho;
Sonho mesmo acordado
E não sei o que fazer...
Faço tantas tolices;
Fico sem cabeça e sem chão.
Não me abandonas nunca,
Fica aqui ao meu lado,
Prenda-me em tuas mãos;
Faça de mim a paixão.


Roberto Corazza

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Boneca de feltro


A boneca de feltro
parece assustada com o próximo milênio.
Quem a aninhará nos braços
com seus olhos de medo e retrós?

O signo da boneca é frágil
mais frágil que o de pássaro.
Confia. Assim passiva
o vento brincará contigo
franzirá teu avental
dirá coisas que entendes
desde a aurora das coisas:
foste um caroço de manga
uma forma de nuvem
ou um galho com braços
de ameixeira no quintal.

Não temas. Solta o
corpo de feltro. Assim.
Para ser embalada nos braços
da menina que houver.

Dora Ferreira da Silva

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Esta noite...esta chuva...


Esta noite... esta chuva... estas reticências. Sei lá. Quem seria capaz de abrir o peito e mostrar a ferida? De dizer o nome? De lembrar, sequer lembrar, o rosto? Quem seria capaz de contar a história? De chamar o maior amigo, ou melhor, o inimigo, e dizer: — Estou me sentindo assim, assim, assim... A humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre. Mas não sabe onde estão as mãos, nem os deuses. E, quando souber, vai achar que as mãos e os deuses são de mentira. Os olhos de todos estarão cheios de medo, os olhos das jovens raparigas, os olhos, os braços, o ventre e as pernas das jovens raparigas, receosos de pagar com os que fazeres do sexo. Nesta noite, com esta chuva, as jovens raparigas não são importantes. Apenas uma tem importância. Mas quem seria de todo livre e descuidado, a ponto de dizer o seu nome? De pensar o seu nome? Você diria em público o nome da Amada? E suportaria ouvi-lo? Não, não; o nome dela, em sua boca ou na dos outros, é tão proibido como sua nudez (dela). Não há diferença. E por que você não se transforma no homem banal, que se encharca de álcool, para apregoar a desdita? Seria mais fácil. Talvez alguém lhe chamasse de porco e você revidasse com um soco no rosto, um só rosto, de todo o Gênero Humano. Viria a polícia, que simplifica tudo, generalizando. E tudo se transformaria em notícia: "Preso o alcoólatra, quando injuriava e agredia a Família Brasileira, na pessoa de um sócio do Country". Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das escolhas seria desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em combate, é burlesca. Uma pergunta, que não tem nada a ver com o corpo desta canção. Quem saberia discriminar o ódio do amor? Ninguém. Os psicologistas e analistas têm perdido um tempo enorme. Ontem à noite, voltando para casa, senti-me espectador de mim mesmo. E confesso que, pela primeira vez, não achei a menor graça. Saíra, pela primeira vez, de óculos e o porteiro do edifício me recebeu com esta agradável pergunta: — Que é que houve? O senhor está mais velho? Tirei os óculos e, fitando-o, esperei as desculpas. Mas o homem continuou: — O que é que houve? De ontem para cá, o senhor envelheceu. Tinha pensado que, sem os óculos... Não estou escrevendo para ninguém gostar ou, ao menos, entender. Estou escrevendo, simplesmente, e isto me supre: contrabalança, quando nada. Esta noite, esta chuva — e poderia escrever as coisas mais alegres, esta noite. Neruda, coitado, as mais tristes. Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida.

Antonio Maria

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Um novo tempo


E de repente, nada mais que de repente...
Acordei de um sonho,
Sedento!
Desperto em meu travesseiro,
Sentindo um doce cheiro;
Um vento...
Um perfume sem igual!
Abro os olhos e vejo
Meu corpo em desejos,
Anseios e emoção...
Meu coração disparado,
Meu peito inflado!
A boca querendo mais...
Tremendo e gelado!
Quente, da cabeça aos pés,
Suando...
Te amando e sendo feliz.
Ah, minha doce ventura!
Oh, manjar de doçura!
Mais nada me faltará...
O dia amanheceu,
Um novo tempo aconteceu;
O amor está em mim,
Em ti,
Em nós!
Estamos a sós...

Roberto Corazza

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Mimosa boca errante


Mimosa boca errante
à superfície até achar o ponto
em que te apraz colher o fruto em fogo
que não será comido mas fruído
até se lhe esgotar o sumo cálido
e ele deixar-te, ou o deixares, flácido,
mas rorejando a baba de delícias
que fruto e boca se permitem, dádiva.

Boca mimosa e sábia,
impaciente de sugar e clausurar
inteiro, em ti, o talo rígido
mas varado de gozo ao confinar-se
no limitado espaço que ofereces
a seu volume e jato apaixonados
como podes tornar-te, assim aberta,
recurvo céu infindo e sepultura?

Mimosa boca e santa,
que devagar vais desfolhando a líquida
espuma do prazer em rito mudo,
lenta-lambente-lambilusamente
ligada à forma ereta qual se fossem
a boca o próprio fruto, e o fruto a boca,
oh chega, chega, chega de beber-me,
de matar-me, e, na morte, de viver-me.

Já sei a eternidade: é puro orgasmo.




Carlos Drummond de Andrade