sexta-feira, 31 de maio de 2013

Cabra-cega


À volta de incerto fogo
Brincaram as minhas mãos.
... E foi a vida o seu jogo!

Julguei possuir estrelas
Só por vê-las.
Ai! Como estrelas andaram
Misteriosas e distantes
As almas que me encantaram
Por instantes!

Em ritmo discreto, brando,
Fui brincando, fui brincando
Com o amor, com a vaidade...

— E a que sentimentos vãos
Fiquei devendo talvez
A minha felicidade!

Pedro Homem de Mello

Conquista


Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!

Miguel Torga

Jardim interior



Todo jardim começa com um sonho de amor.
Antes que qualquer árvore seja plantada
ou qualquer lago seja construído,
é preciso que as árvores e os lagos
tenham nascido dentro da alma.

Quem não tem jardins por dentro,
não planta jardins por fora
e nem passeia por eles...

Rubem Alves

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Sonhei contigo


Sonhei contigo
embora nenhum sonho possa ter habitantes
tu, a quem chamo amor,
cada ano pudesse trazer um pouco mais de convicção
a esta palavra.

É verdade
o sonho poderá ter feito com que,
nesta rarefacção de ambos,
a tua presença se impusesse
como se cada gesto do poema te restituisse um corpo
que sinto ao dizer o teu nome,
confundindo os teus lábios
com o rebordo desta chávena de café já frio…

Então, bebo-o de um trago.

o mesmo se pode fazer ao amor,
quando entre mim e ti
se instalou todo este espaço
-terra, água, nuvens, rios e o lago obscuro do tempo
que o inverno rouba à transparência das fontes.

É isto, porém, que faz com que a solidão
não seja mais do que um lugar comum
saber que existes, aí, e estar contigo
mesmo que só o silêncio me responda
quando, uma vez mais te chamo.

Nuno Júdice

Versos molhados


Respinga a lua seu olhar tristonho,
em gotas mansas beija o adormecer
dos versos, tantos... Que, por ti, componho...
E enquanto eu rimo, a noite faz chover!

Densa neblina no olhar do meu sonho...
É chuva, é pranto... Nem sei mais dizer...
E uma saudade, que jamais transponho,
molha as janelas deste meu viver.

E na vidraça vejo a minha imagem,
chora a vidraça... O choro é meu? Bobagem...
É a tempestade que já se avizinha.

Não mais escrevo, guardo meu caderno
e dou-me conta que chegou o inverno
de uma esperança, que morreu sozinha!

Patricia Neme

Vazio


Todo o mar nos meus olhos, e não basta!
Enche-nos mais uma lágrima furtiva ...
Neste banquete azul, há um só conviva
Farto e feliz.
É o céu, que se debruça sobre as ondas
Sem amargura.
É ele, que não procura
Por detrás da verdade outra verdade.
Serenamente, lá da eternidade,
Bebe e come
A imagem refletida do seu nome.

Miguel Torga

terça-feira, 28 de maio de 2013

Para ti


Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre
Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida.

Mia Couto

Não


Não se preocupe tanto meu bem...
Não finja
Não se preocupe tanto em responder tão prontamente
Em parecer que não se importa...
Não se preocupe comigo
Não agora
Não mais
Não mais suas músicas tristes
Não mais suas frases incompletas
Sua filosofia imperfeita, produzida sob medida
Seu pensamento vicioso
Sua melancolia
Seu medo
Meu deixa ser esse amor impossível de que você gosta tanto,
Me deixa ser esse não
Me deixa ali preservada nesse altar que você cuida com tanto apreço
Me deixa ali no dramático que é o seu amar
Me deixa morrer e ser linda e poética como foi Julieta...
Você me amou porque sabia
Sabia que eu morreria
Que eu morreria no final do segundo ato.
Sim, eu respeito.
Não se preocupe tanto assim meu bem,
Não deixe que eu perceba...
Ligia Canelas

Logo vai passar


Acalme-se e respire bem fundo, isso.
O que acontece com você jovem aprendiz?
O mundo lhe perturba com tantas desgraças, é?
Relaxa. Você tem uma missão aqui na terra!

É a missão de sonhar com o impossível,
Realizar o inesperado, atropelar o medo,
Sim, são coisas que fará seu mundo mudar,
Coisas que quando reais nada mais lhe afetará.

Banhe-se na chuva, na piscina, ou até no mar,
Limpe seu espirito e comece a pensar no bem
Do próximo e o seu também, sabe por que?
Lhe atrai coisas boas que não irá sufocar.

Agora pode ir conquistar o mundo jovem aprendiz,
Ele tem tudo e mais um pouco do que você merece,
Ira encontrar espinhos e águas sujas por ai,
Mais com certeza o melhor ainda está por vir.

Ronaldinho1

Chove...há silêncio


Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...

Fernando Pessoa

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Diz-me


Diz-me por favor onde não estás
em qual lugar posso não te ver,
onde posso dormir sem te lembrar
e onde relembrar sem que me doa.

Diz-me por favor onde posso caminhar
sem encontrar as tuas pegadas,
onde posso correr sem que te veja
e onde descansar com a minha tristeza.

Diz-me por favor qual é o céu
que não tem o calor do teu olhar
e qual é o sol que tem luz apenas
e não a sensação de que me chamas.

Diz-me por favor qual é o lugar
em que não deixaste a tua presença.
Diz-me por favor onde no meu travesseiro
não tem escondida uma lembrança tua.

Diz-me por favor qual é a noite
em que não virás velar meus sonhos.
Que não posso viver porque te espero
e não posso morrer porque te amo.

Jorge Luis Borges

Rainha do mar


Venho das ondas
que beijam as encostas
de um vulcão,
náufraga no oceano dos teus afagos,
afogando-me no mar dos teus sabores,
nas batidas de teu coração

Trago as cores dos corais,
das rosas, os aromas
deusa de muitos amores
pérola dos colecionadores
do Amor!

Conceição Bentes

Outonal


Caem as folhas mortas sobre o lago!
Na penumbra outonal, não sei quem tece
As rendas do silêncio…Olha, anoitece!
-Brumas longínquas do País Vago…
Veludos a ondear…Mistério mago…
Encantamento…A hora que não esquece,
A luz que a pouco e pouco desfalece,
Que lança em mim a benção dum afago…
Outono dos crepúsculos doirados,
De púrpuras, damascos e brocados!
-Vestes a Terra inteira de esplendor!
Outono das tardinhas silenciosas,
Das magníficas noites voluptuosas
Em que soluço a delirar de amor…

Florbela Espanca

sábado, 25 de maio de 2013

Nós


Lês um romance. Eu te contemplo. Ondeia,
lá fora, um vento muito leve e brando;
cheira a jasmins o varandim, brilhando
ao doentio clarão da lua cheia.

Vais lendo. E, enquanto tua mão folheia
o livro, eu vejo que, de quando em quando,
estremecendo, sacudindo, arfando,
teu corpo todo num delírio anseia.

Lês. São cenas de amor: o encontro, o ciúme,
idílios, beijos ao luar... Perfume
que sobe da alma, e gira, e se desfaz...

Vais lendo. E tu não sabes que, sozinho,
eu te sigo, eu te sinto, eu te adivinho,
lendo em teus olhos o que lendo estás.

Guilherme de Almeida

Baile da vida


Os anos passam...
As lembranças são eternas,
A saudade permanente
e os nossos olhos em busca de
cenas de tempos vividos...

Os anos passam...
Vivemos lições de vida,
aprendemos a vasculhar nas nossas
recordações do coração e a acariciar lindos
momentos que se foram para não mais voltar .

Os anos passam...
Crescemos na alma,
mas sempre seremos
frágeis no amor!

Os anos...
muitos virão ou quem sabe...
a nossa estada nesta vida seja curta
nada sabemos do amanhã...
nem quando vamos...

Os anos continuam
a desfilar na passerelle do aprendizado
e nós protagonistas da vida, enfrentamos
os momentos que nos fazem infelizes
e nos deliciamos com os felizes!

Resumindo: a vida é
um grande baile em que
almas se encontram, se esbarram,
se unem e se separam...

Cada qual bailando nos conflitos,
nas esperanças e nas suavidades
de momentos de amor

De todos os anos que se foram,
concluo que viver
é ser cada qual, na sua essência adquirida.

Com todas as adversidades,
com as lágrimas derramadas,
ainda assim, a alegria de viver
é o maior presente embrulhado
em papéis de brilhos de momentos...

Relembrar é viver um pouco mais.
Viva a sua vida pois ela é curta.
Valorize e ame a si mesmo
pois ninguém, mais que você, se conhece.

Olhos de £ince

A inigualável


Ai, como eu te queria toda de violetas
E flébil de cetim...
Teus dedos longos, de marfim,
Que os sombreassem joias pretas...

E tão febril e delicada
Que não pudesses dar um passo -
Sonhando estrelas, transtornada,
Com estampas de cor no regaço...

Queria-te nua e friorenta,
Aconchegando-te em zibelinas -
Sonolenta,
Ruiva de etéres e morfinas...

Ah! que as tuas nostalgias fossem guisos de prata -
Teus frenesis, lantejoulas;
E os ócios em que estiolas,
Luar que se desbarata...

Teus beijos, queria-os de tule,
Transparecendo carmim -
Os teus espasmos, de seda...

- Água fria e clara numa noite azul,
Água, devia ser o teu amor por mim...


Mário de Sá-Carneiro

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Amo o pedaço de terra que tu és


Amo o pedaço de terra que tu és,
porque das campinas planetárias
outra estrela não tenho. Tu repetes
a multiplicação do universo.

Teus amplos olhos são a luz que tenho
as constelações derrotadas,
tua pele palpita como os caminhos
que percorre na chuva o meteoro.

De tanta lua foram para mim teus quadris,
de todo o sol tua boca profunda e sua delícia,
de tanta luz ardente como mel na sombra

teu coração queimado por longos raios rubros,
e assim percorro o fogo de tua forma beijando-te,
pequena e planetária, pomba e geografia.

Pablo Neruda

Oitava rosa de Saron


É preciso enxergar com a visão da aurora
os canteiros de luz nos olhos da alvorada
e crer que as rosas estão lá antes da hora
como servas das antecâmaras da amada.

É preciso convir que não existe o outrora
que rosas sempre têm a brisa perfumada
no topo do futuro que foi sempre o agora
como o êxtase da primavera despertada.

Rosas são infinitas como é a minha fome
do amor eterno que me vive tão profundo
que já nem pode me deixar sem padecer.

Eu vivo pela dor que meu amor consome
na luz de minhas rosas únicas no mundo
que me resgatarão da morte se morrer...

Afonso Estebanez

Soneto Puro


Fique o amor onde está; seu movimento
nas equações marítimas se inspire
para que, feito o mar, não se retire
de verdes áreas de seu vão lamento.

Seja o amor como a vaga ao vago intento
de ser colhida em mãos; nela se mire
e, fiel ao seu fulcro, não admire
as enganosas rotações do vento.

Como o centro de tudo, não se afaste
da razão de si mesmo, e se contente
em luzir para o lume que o ensolara.

Seja o amor como o tempo – não se gaste
e, se gasto, renasça, noite clara
que acolhe a treva, e é clara novamente.

Lêdo Ivo

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Terror de te amar


Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.

Sophia de Mello B. Andresen

Arte de ser feliz


(...)
Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e , em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros, e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos: que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.





Cecilia Meireles

Paisagens de mim


Estas paisagens que me detêm
trazem, às vezes, de mim,
o outro lado, a gastura
e o fastio infinito dos clichês:

desfaço os novelos dos cirros,
enfio a lua no saco
e prossigo,
apagando um a um
os astros.

Fernando Campanella

terça-feira, 21 de maio de 2013

Um dia


Um dia quando a ternura
for a única regra da manhã,
acordarei entre os teus braços,
a tua pele será talvez
demasiado bela
e a luz compreenderá
a impossível compreensão do amor.
Um dia quando a chuva secar na memória.
quando o inverno for tão distante,
quando o frio responder devagar
com a voz arrastada de um velho,
estarei contigo e cantarão pássaros
no parapeito de nossa janela,
sim, cantarão pássaros, haverá flores,
mas nada disso será culpa minha,
porque eu acordarei nos teus braços
e não direi nenhuma palavra,
nem o princípio de uma palavra,
para não estragar
a perfeição da felicidade.


José Luis Peixoto

A cidade do sonho


Sofres e choras? Vem comigo! Vou mostrar-te
O caminho que leva à Cidade do Sonho...
De tão alta que está, vê-se de toda a parte,
Mas o íngreme trajeto é florido e risonho.

Vai por entre rosais, sinuoso e macio, 
Como o caminho chão duma aldeia ao luar,
Todo branco a luzir numa noite de Estio,
Sob o intenso clamor dos ralos a cantar.

Se o teu ânimo sofre amarguras na vida, 
Deves empreender essa jornada louca;
O Sonho é para nós a Terra Prometida:
Em beijos o maná chove na nossa boca...

Vistos dessa eminência, o mundo e as suas sombras, 
Tingem-se no esplendor dum perpétuo arrebol;
O mais estéril chão tapeta-se de alfombras,
Não há nuvens no céu, nunca se põe o Sol

.Nela mora encantada a Ventura perfeita 
Que no mundo jamais nos é dado sentir...
E a um beijo só colhido em seus lábios de Eleita,
A própria Dor começa a cantar e a sorrir!

Que importa o despertar?
 Esse instante divino 
Como recordação indelével persiste;
E neste amargo exílio, através do destino,
Ventura sem pesar só na memória existe...


António Feijó

E o vento não levou...


Minha primeira letra do alfabeto grego
o princípio do amor das aulas de latim
o beta do bendito beijo no aconchego
do primeiro capítulo do amor de mim.

O ciúme que de ti eu tenho por tolice,
a ponto de me declarar em guerra fria
e pôr no dia da batalha uma meiguice
que faça a minha noite clarear teu dia.

E o vento não levou a lucidez da pena
que pago como por dever de gratidão
pelo fato de não ter sido tão pequena
tua herança terrena havida do perdão

que o vento não levou e nunca levaria
da memória da vida agora despertada
do destino capaz de ouvir da ventania
a paz da sinfonia eterna da alvorada...

Afonso Estebanez

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Amor


Amor, quantos caminhos até chegar a um beijo seu,
Que solidão errante até tua companhia!
Mas tu e eu, amor meu, estamos juntos, juntos desde a roupa às raízes,
Juntos de outono, de água, de quadris,
Até ser só tu, só eu, juntos.
Tu e eu tínhamos que simplesmente amar-nos.

Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
Te amo diretamente sem problemas sem orgulho
Assim te amo, porque não sei amar de outra maneira...

Quantas vezes, amor, eu te amei sem ver-te e talvez sem lembrança,
Sem reconhecer teu olhar, sem fitar-te centauro.
Depois te vi, te supus ao passar levantando uma taça, à luz da lua de junho.
Te amei sem que eu o soubesse, e busquei tua memória.
De repente, enquanto ias comigo te toquei e se deteve minha vida.
Diante de meus olhos estavas, regendo-me, e reinas.

Pablo Neruda

Teu sonho


Já és minha. Repousa com teu sonho em meu sonho.
Amor, dor, trabalho, devem dormir agora.
Gira a noite sobre suas invisíveis rodas
e junto a mim és pura como âmbar dormido...
Nenhuma mais, amor, dormira com meus sonhos...
Irás, iremos juntos pelas águas do tempo.
Nenhuma viajará pela sombra comigo, só tu.
sempre viva. sempre sol... sempre lua...
Já tuas mãos abriram os punhos delicados
e deixaram cair suaves sinais sem rumo...
teus olhos se fecharam como
duas asas cinzas, enquanto eu sigo a água
que levas e me leva.
A noite... o mundo... o vento enovelam seu destino,
e já não sou sem ti senão apenas teu sonho...

Pablo Neruda

As palavras


Sempre amei por palavras muito mais
do que devia
são um perigo
as palavras

quando as soltamos já não há
regresso possível
ninguém pode não dizer o que já disse
apenas esquecer e o esquecimento acredita
é a mais lenta das feridas mortais
espalha-se insidiosamente pelo nosso corpo
e vai cortando a pele como se um barco
nos atravessasse de madrugada

e de repente acordamos um dia
desprevenidos e completamente
indefesos

um perigo
as palavras

mesmo agora
aparentemente tão tranquilas
neste claro momento em que as deixo em desalinho
sacudindo o pó dos velhos dias
sobre a cama em que te espero

Alice Vieira

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Canção




Ouvi cantar de tristeza,
porém não me comoveu.
Para o que todos deploram,
que coragem Deus me deu!

Ouvi cantar de alegria.
No meu caminho parei.
Meu coração fez-se noite.
Fechei os olhos. Chorei.

Dizem que cantam amores.
Não quero ouvir mais cantar.
Quero silêncios de estrelas,
voz sem promessas do mar.

Cecília Meireles

É provável que ainda a ame


É provável, sim, é provável que ainda a ame, que ame nela o que antes soube amar, a cabeleira escura, o ventre inquietante, o peito guardando a alegria de um coração solar.

Os meus olhos profundos sempre a contemplaram visivelmente perturbados, até mesmo perdidos, quando ela caminhava abrindo rasgões no ar que se fechavam depois à sua passagem para cingir-lhe os braços, os seios e as ancas. A sua boca tremeu na minha com a sede da música e o seu contacto era o do musgo e o da cinza, e dessas cerejas maduras pelo lume de maio.

Não sei se estou a endeusá-la ou se ela é uma deusa. Não sei mesmo se conseguirei dizer dela quanto gostaria. Ela está tão perto do meu corpo que a minha pele se acende, e tão longe dos meus olhos que só poderei lembrá-la. Fizemos muito amor e sempre muitas vezes, sem que entre nós esvoaçasse uma minima sombra. Quando ficávamos tristes, é que o espanto crescia até ao minuto primeiro da tristeza.

É uma mulher maravilhosa, o seu nome que importa?, tão frágil como um menino inocente, assim desamparada, correndo para a loucura como antes correu para os meus braços. Nenhuma paixão poderia doer-me mais. Nenhuma ternura poderia mimar-me tanto. O meu poema é uma casa erguida com a sua beleza, onde ela entra e de onde sai e algumas vezes se demora.

Poderei dizer que o meu coração é uma sala vazia? A sua recordação ainda me perturba e disso tenho consciência. Amo-a ainda, ou não a amo já, é impossível dizer. Mas é provável, sim, é provável que ainda a ame.


Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

O meu alentejo


Meio-dia. O sol a prumo cai ardente,
Dourando tudo...ondeiam nos trigais
D´ouro fulvo, de leve...docemente...
As papoulas sangrentas, sensuais...

Andam asas no ar; e raparigas,
Flores desabrochadas em canteiros,
Mostram por entre o ouro das espigas
Os perfis delicados e trigueiros...

Tudo é tranquilo, e casto, e sonhador...
Olhando esta paisagem que é uma tela
De Deus, eu penso então: onde há pintor,

Onde há artista de saber profundo,
Que possa imaginar coisa mais bela,
Mais delicada e linda neste mundo?

Florbela Espanca

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Sonhos


Ontem eu sonhei que você viria até mim
e viveríamos os anos juntos.
A espera finalmente tinha acabado.

Sua voz existia e ecoava nos meus ouvidos,
embalava meu coração e lavava toda a dor que ele guardava. Foram anos esperando a sua chegada, anos ouvindo adeus.
Eu sonhei que a minha vida seria tão diferente dessa espera
e que encontraria conforto no seu abraço.
Você nunca iria embora no inverno e então eu não passaria frio. Não existiria o ontem, nem lágrimas e nem sonhos perdidos.
Sonhei com uma vida límpida e que Deus
finalmente tinha atendido o meu pedido e te enviado para mim.

Mas então eu acordei em uma manhã gélida,
permaneci deitada na cama te esperando,
mas você não chegava, você nunca chegou...
A vida costuma matar o sonho que sonhamos...


Sid Batalha

Essa lembrança


Essa lembrança que nos vem às vezes...
folha súbita
que tomba
abrindo na memória a flor silenciosa
de mil e uma pétalas concêntricas...
Essa lembrança...mas de onde? de quem?
Essa lembrança talvez nem seja nossa,
mas de alguém que, pensando em nós, só possa
mandar um eco do seu pensamento
nessa mensagem pelos céus perdida...
Ai! Tão perdida
que nem se possa saber mais de quem!

Mario Quintana

A canção da espera


Quando deixares meu desavisado coração
não esqueças de deixar a luz da lua acesa.
Deixa a chave da esperança sobre a mesa
do quarto onde dormiu teu último verão.

Não te esqueças das romãs do teu outono
só porque as sombras do inverno te virão
como lembranças de um amor de ocasião
que não conciliava mais o próprio sono.

Talvez eu me adormeça aqui para sonhar
com o outro lado temporão da primavera
onde eu sonhar me seja estar à tua espera
doendo de um retorno de qualquer lugar.

Estarei dividindo com as águas do riacho
uma breve canção de prazer e sofrimento
sobre a vida refeita de pena sem lamento
o coração envolto no seu próprio abraço.

Afonso Estebanez

terça-feira, 14 de maio de 2013

Posso beber?


Posso beber o amor
pelo copo dos teus lábios?
O disco chega ao fim;
um ruído de rua entra pela janela;
não sei se ainda é dia,
ou se a noite começa.
Mas o mundo não interfere
no equilíbrio frágil das nossas vidas.
Este copo não se esvazia;
e os teus olhos levam-me à fronteira do sonho,
para que a passe,
e entre contigo num país de nuvem.
O meu passaporte são as tuas mãos; o mapa que nos guia,
a respiração incerta do desejo.
Por isso me perco... dizes.
Por isso te encontro... respondo.
E a noite que nos separa
é o dia que nos reúne.

Nuno Judice

Ausência



Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me verdes eternamente exausto
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meus gestos existem os teus gestos e em minha voz a tua voz
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho desta terra amaldiçoada
Que ficou sobre minha carne como uma nódoa do passado
Eu deixarei... Tu irás e encontrarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais do que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz eternizada

Vinicius de Morais

Amantes da aldeia


Eles tinham cabelos brancos
do amor que dói e não passa
e a lembrança dos encontros
por entre os jardins da praça...

Fecundavam-se entre beijos
e entre abraços numa dança
encobrindo entre os desejos
velhos segredos da infância...

Eram como almas agrestes
das aves férteis de outonos...
E se amavam nos ciprestes
dos silvestres cinamomos...

Ah!... os amantes da aldeia
são de quando o amor doía...
E quando morria um deles,
ah, o outro também morria...

Afonso Estebanez

domingo, 12 de maio de 2013

Síntese da felicidade


Desejo a você
Fruto do mato
Cheiro de jardim
Namoro no portão
Domingo sem chuva
Segunda sem mau humor
Sábado com seu amor
Filme do Carlitos

Chope com amigos
Crônica de Rubem Braga
Viver sem inimigos
Filme antigo na TV
Ter uma pessoa especial
E que ela goste de você
Música de Tom com letra de Chico
Frango caipira em pensão do interior
Ouvir uma palavra amável
Ter uma surpresa agradável
Ver a Banda passar
Noite de lua Cheia
Rever uma velha amizade
Ter fé em Deus
Não Ter que ouvir a palavra não
Nem nunca, nem jamais e adeus.
Rir como criança
Ouvir canto de passarinho
Sarar de resfriado
Escrever um poema de Amor
Que nunca será rasgado
Formar um par ideal
Tomar banho de cachoeira
Pegar um bronzeado legal
Aprender um nova canção
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada
Pôr-do-Sol na roça
Uma festa
Um violão
Uma seresta
Recordar um amor antigo
Ter um ombro sempre amigo
Bater palmas de alegria
Uma tarde amena
Calçar um velho chinelo
Sentar numa velha poltrona
Tocar violão para alguém
Ouvir a chuva no telhado
Vinho branco
Bolero de Ravel
E muito carinho meu.
Carlos Drummond de Andrade

Não posso adiar o amor


Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas.

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio.

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação.

Não posso adiar o coração.

António Ramos Rosa

Canção do vento


Viverei na imutável busca
da essência de uma gota tênue
perdida na imensidão
ritmada na solidão

Navegarei ao som dos ventos
pelos acordes de uma canção melancólica
até chegar a ti, nos enlevos espirituais
transformando dias
misturando horas
desfazendo instantes

Conceição Bentes

quinta-feira, 9 de maio de 2013

No teu rosto


No teu rosto
competem mil madrugadas

Nos teus lábios
a raiz do sangue
procura suas pétalas

A tua beleza
é essa luta de sombras
é o sobressalto da luz
num tremor de água
é a boca da paixão
mordendo o meu sossego

Mia Couto

Maria


Tenho cantado esperanças... 
Tenho falado d'amores...
Das saudades e dos sonhos
Com que embalo as minhas dores...

Entre os ventos suspirando
Vagas, ténues harmonias,
Tendes visto como correm
Minhas doidas fantasias.

E eu cuidei que era poesia
Todo esse louco sonhar...
Cuidei saber o que e vida
Só porque sei delirar...

Só porque a noite, dormindo
Ao seio duma visão,
Encontrava algum alivio,
Meu dorido coração,

Cuidei ser amor aquilo
E ser aquilo viver...
Oh! que sonhos que se abraçam
Quando se quer esquecer!

Eram fantasmas que a noite
Trouxe, e o dia já levou...
A luz da estranha alvorada
Hoje minha alma acordou!

Esquecei aqueles cantos...
Só agora sei falar!
Perdoa-me esses delírios...
Só agora soube amar!

Antero de Quental

Se ao menos soubesses


Se ao menos soubesses tudo o que eu não disse
ou se ao menos me desses as mãos como quem beija
e não partisses, assim, empurrando o vento
com o coração aflito, sufocado de segredos;
se ao menos percebesses que eram nossos
todos os bancos de todos os jardins;
se ao menos guardasses nos teus gestos essa bandeira de lirismo
que ambos empunhamos na cidade clandestina
Quando as manhãs cheiravam a óleo e a flores
e o inverno espreitavam ainda nas esquinas como uma criança tremendo;
se ao menos tivesses levado as minhas mãos para tocar os teus dedos
para guardar o teu corpo;
se ao menos tivesses quebrado o riso frio dos espelhos
onde o teu rosto se esconde no meu rosto
e a minha boca lembra a tua despedida,
talvez que, hoje, meu amor, eu pudesse esquecer
essa cor perdida nos teus olhos.

Joaquim Pessoa

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Poema XCVIII


Deixar nas tuas mãos tudo o que eu amo
nadar no lago verde dos teus olhos
em teu corpo saber como eu me chamo
queimar manhãs de incenso ou de petróleos
chamar por ti, uivar como se um lobo
devorasse corças brancas no meu peito
e o coração inteiro fosse pouco
para amar ou morrer de qualquer jeito
saber que esse punhal que o vento ergue
acima do esplendor da amendoeira
é apenas o tempo que se perde
ao acender de dia uma fogueira
e naufragar em ti como se eu fosse
um mastro habituado a correr mundo
e no mar do teu ventre inquieto e doce
mergulhar nesta noite até ao fundo.

JOAQUIM PESSOA

Balada de sempre


Espero a tua vinda,
a atua vinda,
em dia de lua cheia.
debruço - me sobre a noite
inventando crescentes e luares.
Espero o momento da chegada
com o cansaço e o ardor de todas as chegadas.
Rasgarás nuvens, estradas,
abrindo clareiras
nas sebes e nas ciladas.
Saltarás por cima de mares,
de planícies e relevos
- ânsia alada
no meu desejo imaginada
Mas
enquanto deixo a janela aberta
para entrares
o mar
aí além,
lambe-me os braços hirtos, braços verdes
algas de sonho
- e desenha ironias na areia molhada

Fernando Namora

Versos


Eu sou feita de versos sem rima

De palavras simples

De vento sul

De labaredas

Sou mutável

Sou mutante

Quase inconstante

Me perco no som das letras

Me encontro na junção das palavras

Sou mansa

Sou fera

Tenho desejos contidos

Sonhos impossíveis

Sou avessa

Sou matreira

Sou deleite

Sou semente

Sou orvalho

Reticências...


Lou Witt

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Amor e paixão


Paixão é fogo, duradouro ou passageiro,
Que aquece o peito, nos inflama e satisfaz…
Delírio d’alma, que arrebata corpo e mente,
Mas de ferir, de machucar, ela é capaz.

Amor é brisa, perfumada, matinal,
Um arco-íris em matizes de ternura…
Porto seguro, nosso lume essencial,
Âncora e fonte de felicidade pura.

Rola a paixão numa ação devastadora
E o amor, num perene encantamento…
Se o tornado da paixão nos deixa marcas,
A aragem do amor alivia o sofrimento…

Porém nem sempre a paixão leva ao amor…
Também nem sempre o amor contém paixão…
Mas tendem ambos a se unir, nos confundir,
Nos instigantes meandros da sedução…

O que mais quero é para sempre equilibrar
Paixão e amor no mesmo rol das emoções…
Quero de amor à tua vida me enlaçar
E de paixão me entregar, sem restrições…


Oriza Martins

A palavra


A palavra que não pode ser dita,
Tem o potencial de arrebentar o coração,
Pressionando-o e fazendo doer.
A palavra que não deve ser dita,
Se dita mudaria o destino, se não, também.
Aliviaria a saudade, mas deixaria o orgulho machucado.
A palavra que não pode ser dita martela e faz sangrar,
Ela pode ficar presa e se transformar, ou se desintegrar como poeira no vento.
A palavra dita é prata, a palavra silenciada é ouro

Loyvana Perucchi

Você não sabe...


Meu escárnio é paixão escondida.
Enlouquecido pela sua presença,
disfarço com minhas ironias e descasos.

Toco discreto seus cabelos em cada despedida.
Sinto seu cheiro o tempo todo nas minhas narinas.
Como se fosse o ar que inspiro...

Sua aliança... Seu sorriso no porta-retrato,
são facas afiadas cravadas no meu sexo.
Apaixonado, confesso mudo, mirando sua boca carnuda.

Não te possuir e beijar você inteiramente nua,
é como morrer todo dia no inferno do Desejo.
Pensar em você me faz agonizar no desespero.

Somos amigos ...
Esta é a tradução de comer migalhas. Um dia...
Um dia esqueço a polidez e abusadamente te invado

Enquanto este dia não chega,
o que me resta é admirar o balanço dos seus quadris,
passeando ousado entre as mesas do escritório.

Alberto Najwa

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Sentidos


O meio termo já não me satisfaz.
Nem pessoas máximas vazias
Nem as ínfimas cheias de mais.
Se por isso me sentencias
Se não me compreendes mais
Digo-te novamente:
É a essência que busco!
Um coração cheio de gente
E não gente cheia de razão.
Quero a carne o osso, a alma
Quero tudo intensamente.
Quero dessa louca vida calma
Desde o fruto
Até a semente!

Carolina Salcides