quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Doce paixão


Amor e alegria,
Sonhos pra sonhar...
É pura fantasia,
Um bem estar!
É um dia novo, pra recomeçar...
É festa do sol e do luar
Pra te abraçar.
Amigos toda hora,
É hora de amar;
Beijar...
Não sei o que seria,
Sem o teus olhos pra brilhar?
Não sei se a minha vida
Seria devagar...
Se divagando estaria,
Vivendo sem viver.
Tu és o que mais gosto;
Só gosto de você,
Meu mundo, razão e emoção;
Oh, Minha doce paixão!

Roberto Corazza

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Poema sobre o amor eterno


Inventaram um amor eterno. Trouxeram-no em braços para o meio das pessoas e ali ficou, à espera que lhe falassem. Mas ninguém entendeu a necessidade de sedução. Pouco a pouco, as pessoas voltaram a casa convictas de que seria falso alarme, e o amor eterno tombou no chão. Não estava desesperado, nada do que é eterno tem pressa, estava só surpreso. Um dia, do outro lado da vida, trouxeram um animal de duzentos metros e mil bocas e, por ocupar muito espaço, o amor eterno deslizou para fora da praça. Ficou muito discreto, algo sujo. Foi como um louco o viu e acreditou nas suas intenções. Carregou-o para dentro do seu coração, fugindo no exacto momento em que o animal de duzentos metros e mil bocas se preparava para o devorar.

Valter Hugo Mãe

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Loucos


Só os loucos não são loucos,
Só os loucos vivem bem...
São alegres e felizes,
Fazem tudo sem errar.
Só os loucos amam muito,
São capazes de sonhar;
São sinceros, carinhosos,
Vivem só para amar.
Só os loucos fazem loucuras
E abraçam sem pensar...
Beijam com muita vontade,
Dizem tudo o que pensam;
Nunca pensam pra ajudar.
Só os loucos são carentes,
Diferentes...
Dizem sempre o que querem
E ouvem tudo com prazer!
Nunca dormem satisfeitos,
Pois o mundo querem mudar.
São poetas sonhadores,
Doidos caprichosos...
Malucos sem defeitos!
Lelés perfeitos...
Seres sem igual.
Amantes da natureza,
Mistura do açúcar e sal;
Doces e amargos também.
Sou um louco como tal!
Loucos somos...

Roberto Corazza


domingo, 14 de dezembro de 2014

A mulher madura


O rosto da mulher madura entrou na moldura de meus olhos. De repente, a surpreendo num banco olhando de soslaio, aguardando sua vez no balcão. Outras vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs. Vezes outras a entrevejo no espelho de uma joalheria. A mulher madura, com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz grega, tem qualquer coisa de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé. Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosamente. A adolescente não sabe ainda os limites de seu corpo e vai florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muito barulho, joga muita água para os lados. Enfim, desborda. A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de concupiscência. Seus olhos não violam as coisas, mas as envolvem ternamente. Sabem a distância entre seu corpo e o mundo. A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira. Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs. A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem dos dentes e dos olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. E até no gozo ela soa com a profundidade de um violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a campina do leito. A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriu-se em opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela dimensão de outros corpos. Por isto as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um aprendizado da macia paina de setembro e abril. O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa. Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os mais politizados têm que ter condescendência e me entender. A maturidade também vem à mulher pobre, mas vem com tal violência que o verde se perverte e sobre os casebres e corpos tudo se reveste de uma marrom tristeza. Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior. Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo que o outro nos confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador. Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco pensá-lo apenas como um relâmpago de juventude, um brilho de raquetes e pernas sobre as praias do tempo. Cada idade tem seu brilho e é preciso que cada um descubra o fulgor do próprio corpo. A mulher madura está pronta para algo definitivo. Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena à tarde acompanhando com o complacente olhar o vôo das andorinhas e as crianças a brincar. A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir à Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece profundidades. Por isto, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta jóias. As jóias brotaram de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se fossem prendas do tempo. A mulher madura é um ser luminoso é repousante às quatro horas da tarde, quando as sereias se banham e saem discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia. Pena que seu marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos múltiplos mercados dos gestos. Ele não sabe, mas deveria voltar para casa tão maduro quanto Yves Montand e Paul Newman, quando nos seus filmes. Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro marido não sabem o que perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher madura, mais que nunca pronta para quem a souber amar.

Affonso Romano Sant'Anna

sábado, 13 de dezembro de 2014

Poema sujo


turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos

menos que escuro
menos que mole e duro
menos que fosso e muro: menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? como pluma?
claro mais que claro claro: coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica
e vem sonhando desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu
tua gengiva igual a tua bocetinha
que parecia sorrir entre as folhas de
banana entre os cheiros de flor
e bosta de porco aberta como
uma boca do corpo
(não como a tua boca de palavras) como uma
entrada para
eu não sabia tu
não sabias
fazer girar a vida
com seu montão de estrelas e oceano
entrando-nos em ti
bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Não era Helena nem Vera
nem Nara nem Gabriela
nem Tereza nem Maria
Seu nome seu nome era…
Perdeu-se na carne fria
perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia

(Trecho de Poema Sujo, de Ferreira Gullar).

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Se eu de ti me esquecer


Se eu de ti me esquecer, nem mais um riso
Possam meus tristes lábios desprender;
Para sempre abandone-me a esperança,
Se eu de ti me esquecer.

Neguem-me auras o ar, neguem-me os bosques
Sombra amiga, em que possa adormecer,
Não tenham para mim murmúrio as águas,
Se eu de ti me esquecer.

Em minhas mãos em áspide se mude
No mesmo instante a flor, que eu for colher;
Em fel a fonte, a que chegar meus lábios,
Se eu de ti me esquecer.

Em meu peregrinar jamais encontre
Pobre albergue, onde possa me acolher;
De plaga em plaga, foragido vague,
Se eu de ti me esquecer.

Qual sombra de precito entre os viventes
Passe os míseros dias a gemer,
E em meus martírios me escarneça o mundo,
Se eu de ti me esquecer.

Se eu de ti me esquecer, nem uma lágrima
Caia sobre o sepulcro, em que eu jazer;
Por todos esquecido viva e morra,
Se eu de ti me esquecer.

Bernardo Guimarães

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

E por falar


E por falar em paixão,
Você é a razão;
O amor que sonhei...
A estrela, a lua por quem me enamorei.
E por falar em amor,
Sem razão de ser,
Seria o cheiro da alegria,
O perfume da flor;
Caminho de rosas,
Botão...
E por falar em amar,
Tudo pode acontecer...
Nestas horas de encanto,
Sem pranto, sem dor.
E por falar da alegria,
Bem que eu queria
Viver sem nostalgia,
Te amando...
E por falar de um abraço,
Bem que podias estar em meus braços
Dormindo, sonhando,
Vivendo...
E por falar em teus beijos,
Me vem o desejo de te beijar.
E por falar disto tudo,
Tu és o meu mundo;
Minha razão de ser.
E por falar em saudade,
Só vivo porque
Eu vivo este instante,
Só eu e você.

Roberto Corazza

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

As pombas


Vai-se a primeira pomba despertada…
Vai-se outra mais… mais outra… enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada.

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada.

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem… Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais.

Raimundo Correia

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Quero...



Quero...
Um bom dia,
o colorido da tua alma,
um beijo
um café.
Um boa tarde,
uma risada gostosa,
um beijo
um chá.
Um boa noite,
"como foi seu dia"?
um beijo
uma carícia
uma taça de vinho...
Mais tarde...
uma taça de vinho,
teu corpo ávido,
tua alma calma
e todos os teus beijos...

Gardenia

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Modo de amar


Prometo ser-te fiel se mo fores
também, não é certo que mo venhas a
ser. Por isso, já to perdoo.

Prefiro partir assim para o resto da
vida. Assim, com os olhos abertos à
frustração e talvez à vulnerabilidade.

Não prevejo nada em concreto, acredita,
não tenho olhos para outras moças,
só o digo assim por ser verdade.

Que tarde ou cedo havemos de encontrar
nos outros motivos de inusitado
interesse, e depois, pergunto,

Vale mais que acordemos um amor
sobreposto ao futuro, um amor agora
que tenha conhecimento do futuro

e não esperar mais nada senão
a verdade. A decadente verdade que
chega já depois dos primeiros beijos.

Valter Hugo Mãe

domingo, 7 de dezembro de 2014

Aninha e suas pedras


Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

Cora Coralina

sábado, 6 de dezembro de 2014

Lembrar-me-ei de ti


Lembrar-me-ei de ti, e eternamente
Hei de chorar tua fatal ausência,
Enquanto atroz saudade
Não extinguir-me a seiva da existência;
E recordando amores que frui,
Por estes sítios sempre entre suspiros
Lembrar-me-ei de ti.
De noite no aposento solitário
Cismando a sós, verei a tua imagem
Aparecer-me pálida e saudosa
Dos sonhos na miragem;
E então chorando o anjo que perdi,
Meu leito banharei de ardente pranto
Chamando em vão por ti.
Quando a manhã formosa alvorecendo
De seus fulgores inundar o espaço,
Demandarei saudoso
Esse lugar em que no extremo abraço
Teu lindo corpo ao peito meu cingi;
E deste vale os ecos acordando
Perguntarei por ti.
Quando por trás daqueles arvoredos
O sol sumir-se, vagarei sozinho
Por essas sombras, onde outrora juntos
Nos sentamos à borda do caminho;
E às auras que suspiram por ali,
Inda teu doce nome murmurando,
Hei de falar de ti.
Além, onde sonora a fonte golfa
À sombra de um vergel sempre viçoso,
Que sobre nós mil flores entornava,
Irei beijar a relva em que ditoso
Sobre teu seio a fronte adormeci,
E com a clara linfa que murmura,
Suspirarei por ti.
E quando enfim secar-se a última lágrima
Nos olhos meus em triste desalento,
Bem como a lira, em que gemendo estala
A extrema corda com dorido acento,
No sítio em que a primeira vez te vi,
Exalando um suspiro, de saudades
Hei de morrer por ti.

Bernardo Guimarães

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Filtro solar!


Nunca deixem de usar o filtro solar.
Se eu pudesse dar só uma dica sobre o futuro, seria esta use filtro solar.
Aproveite bem, o máximo que puder, o poder e a beleza da juventude.
Ou, então, esquece...
Você nunca vai entender mesmo o poder e a beleza da juventude até que tenham se apagado.
Não se preocupe com o futuro.
Ou então preocupe-se, se quiser, mas saiba que pré-ocupação é tão eficaz quanto mascar chiclete para tentar resolver uma equação de álgebra.
Todo dia, enfrente pelo menos uma coisa que te meta medo de verdade.
Cante.
Não seja leviano com o coração dos outros.
Não ature gente de coração leviano.
Não perca tempo com inveja.
Às vezes se está por cima, às vezes por baixo.
A peleja é longa e, no fim, é só você contra você mesmo.
Não esqueça os elogios que receber.
Esqueça as ofensas.
Se conseguir isso, me ensine.
Guarde as antigas cartas de amor.
Jogue fora os extratos bancários velhos.
Estique-se.
Não se sinta culpado por não saber o que fazer da vida.
As pessoas mais interessantes que eu conheço não sabiam, aos vinte e dois o que queriam fazer da vida.
Alguns dos quarentões mais interessantes que eu conheço ainda não sabem.
Tome bastante cálcio.
Seja cuidadoso com os joelhos.
Você vai sentir falta deles.
Talvez você case, talvez não.
Talvez tenha filhos, talvez não.
Talvez se divorcie aos quarenta, talvez dance ciranda em suas bodas de diamante.
Dance...
Dance...
Dedique-se a conhecer seus pais.
É impossível prever quando eles terão ido embora, de vez.
Seja legal com seus irmãos.
Eles são a melhor ponte com o seu passado e possivelmente quem vai sempre mesmo te apoiar no futuro.
Entenda que amigos vão e vem, mas nunca abra mão de uns poucos e bons.
More uma vez em Nova York, mas vá embora antes de endurecer.
More uma vez no Havaí, mas se mande antes de amolecer.
Viaje.
Cuidado com os conselhos que comprar, mas seja paciente com aqueles que os oferecem.
Conselho é uma forma de nostalgia.
Compartilhar conselhos é um jeito de pescar o passado do lixo, esfregá-lo, repintar as partes feias e reciclar tudo por mais do que vale.
Mas, no filtro solar, acredite.


Pedro Bial

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Bilhete


Se você dobrar à esquina
da rua detrás da minha
e se não tiver preguiça
de atravessá-la todinha,
encontrará na esquina oposta
num muro alto caiado
uma frase escrita em sânscrito
como se fosse um recado
para ninguém sabe quem
e por ninguém decifrado.
Se conseguir decifrá-la
responda seja o que for
lá mesmo no espaço ao lado
faça-me este favor
que não vai lhe faltar nada.
Era só isso.
Obrigada

Lenilde Freitas

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Tudo se fez


Foi assim, e tudo se fez...
Fez-se o mundo e o universo;
Fiz os meus versos
E as controvérsias;
Fez-se o amor, também a paixão.
Criou-se saudade e a realidade...
Nasceu numa flor!
E veio você...
Nascestes pra mim;
Brotou meu jardim!
Enfim eu nasci, só pra te amar...
Viestes serena, tão linda, pequena,
Mas grande também!
Sorrindo e me amando,
Cantando...
Então eu chorei de alegria;
Sorri ao te ver
E tão feliz eu fiquei!
E tudo se fez...

Roberto Corazza.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O porvir


Cedo se fez o dia
pra que em seu transcorrer
ainda houvesse as manhãs
as tardes , as noites e as madrugadas.
Pequeno se fez o ser
para que em seu crescimentto
ainda houvesse a infância
a juventude e a maturidade.

...E na madrugada do dia
antes que um novo se fizesse...
na maturidade do ser
A gente se encontrou.
Será dia?
Será noite?

E antes que tudo finde
nasce o amor
que a tudo renova.
que faz do dia ..seu dia-a-dia

Luciete Valente

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Cão sem plumas


A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.

Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos povos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.

João Cabral de Melo Neto

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Londrina


Nesses meus tempos,
que junto sem contar idades
nem me preocupar
com tradições ou preconceitos,
sempre fui meio senhora, meio menina,
meio assim campo aberto aos carinhos,
mansos ou violentos,
ateus ou religiosos, daqueles que
amassaram minha carne fértil, viscosa,
cor de fogo, cor de desafio, cor de todas as cores.

Eu os convidava estirada no espigão,
um barreiro vulcânico:
venham a mim de onde vierem,
a cavalo, a pé, navegantes,
pelos matas ou águas barrentas,
príncipes, lavradores, familiares ou errantes,
pessoas boas ou vida-tortas,
venham.

Os primeiros vieram,
levantaram ranchos de palmito,
fincaram estacas, abriram talhos
e me deram adjetivos
os mais estranhos, os mais loucos
como a febre de amor que sempre lhes causei,
do primeiro luar até hoje:
maliciosa, perturbadora, receptiva,
visguenta, rude, roxa, vermelha, linda, suja...

Apaixonaram-se, e tanto,

os primeiros e muitos outros,
que podia eu fazer a não ser retribuir
com mais pigmentos do coração?
A não ser lhes sujar as barras das calças, das saias
das casas e do fundo de suas almas
entregues a este louco amor?Primeiro, me vestiram de algodão
depois, me vestiram de café florido,
fiquei sempre muito bonita,
com o suor e as lágrimas daqueles
que regavam meu chão ou
daqueles que contavam lorotas
em minhas noites ébrias de paixão
ou daqueles que sangravam dores

Fiquei sempre linda,
caipira ou senhora do mundo,
fui sendo feita na velocidade dos anos
fui sendo eu, meio assim sem cronologia:

nos varais vermelhos,
na poeira endiabrada,
na meleca das maças,
no palito de limão,
no barro do lago,
no ferrão dos marimbondos,
na xepa da feira,
nas cicatrizes do capotão,
no frêmito dos gols,
na gritaria das cigarras,
na angústia do poente,
no morno do vento,
na ponta do canivete,
no fio da navalha,
na sanha da faca,
na paçoca de amendoim,
no salgado da pipoca,
no doce da tubaína,
no riso do circo,
na palhaçada dos meninos,
no encardido das unhas,
na farra das matinês,
nos chifres dos rodeios,
nas perobas e no aroma verde das matas,
na penugem que me sobrou do bosque,
no catecismo ensebado,
na música caipira,
na rouquidão do rádio,
no rangido líquido do poço,
nos concursos de emissora,
na luz das manhãs,
no azul estupendo dos dias,
na pintura das nuvens,
na arte celestial dos germes,
no badalar dos sinos,
no limbo dos paralelepípedos,
nas curvas lanhadas dos postes,
nas cercas e nos muros,
no perfume do beira-de-linha,
na lâmina do capim,
no latifúndio do espaço,
no bico de anu torrado,
na bosta das mulas,
no roubo de melancia,
na dor do tiro de sal,
no ardume da ferida,
no podre do dente,
no arame farpado,
na borracha do estilingue,
na caixa de engraxate,
no alvo das vidraças,
no medo do cemitério,
nos mistérios da zona,
nos segredos das escolas,
na alegria dos balaios-de-puta,
na vadiagem das noites,
na buzina enferrujada dos calhambeques,
na meninice das festas,
no laquê dos cabelos,
no coração das paixões,
nos temperos humanos,
na loucura dos sentimentos,
no tomate das lâmpadas,
na gritaria dos pardais,
na languidez dos córregos,
no esguio dos lambaris,
na búrica da terra,
nas mãos tingidas,
nos barracões entupidos de sacos,
nos sacos sujos da venda,
nas línguas de açúcar cristal
na goma arábica das figurinhas,
na cola de farinha de trigo,
no escândalo das matracas do padeiro,
no berreiro das maritacas,
no corte do açougueiro,
na preguiça da carroça,
no litro de leite de vidro,
no estalar de bombinhas,
no olhar imperial do relojão,
no sangue do dedão arrebitado,
no coleirinha na gaiola do pasto,
na gordura do bar da rodoviária,
nos rachados dos calcanhares,
na chuva roxa,
no grude do barro,
na mata-junta magrela,
na sola da botina,
no apito metálico e dolorido do trem,
nos trilhos oleosos,
no corte de aço e dormentes,
na liberdade dos quintais,
na tosse braseira do cigarro,
nas dores dos hospitais,
no crepitar das fogueiras,
nas minhas tribos reunidas,
na molecagem da vida,
na saliva do lambe-lambe,
na sépia das fotostanto e tanto e muito mais
eu trago no peito,
plena de substantivos e adjetivos,
agora informática e na modernidade
nos olhos rubros e ardidos de saudades
eu trago minha memória
congelada nas imagens do papel

Não tenho sobrenome
nem referência,
minha mistura de gentes e línguas
é uma santa e provocadora querência.
Só tenho um nome
e uma sina:
ser pra sempre menina,
tendo oito ou oitenta –

Nilson Monteiro

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Entre...


Entre o que você é e o que você gostaria de ser. Entre o que você é e gostaria de parecer. Entre o que você quer e o que diz querer. Entre o que você quer ser quando crescer e o que deixou se perder. Entre o que você vê e o que não vê. Entre o seu olhar e o que suas mãos podem tocar. Entre tudo o que você vai esquecer das lembranças que nunca irão se apagar. Entre o muito rápido e o quase devagar. Entre o desistir e o perseverar. Entre o querer e o desejar. Entre a repulsa e a bondade. Entre o tempo e a idade. Entre o futuro e a saudade. Entre o esquecido e o perdido. Entre este momento e o seguinte. Em algum lugar existe um meio termo. Entre o meio e o termo. Meio é entre princípio e fim. Termo quer dizer prazo. Entre a sua ousadia e a paciência nossa. Entre o que você gostaria e o que você gosta. Entre o autor e a obra. Entre o desperdício e a sobra. Entre construir - difícil. E destruir - fácil. Entre a triste verdade e a alegre mentira. Entre a mulher e a menina. Entre o que cega e o que fascina. Nas entrelinhas. Entre a aparência e o engano. Entre o sonho e a ilusão. Entre o sim e o não. Talvez. Entre a minha e a tua vez. Entre o que você fez. Entre o que você deixou de fazer. E o que eu nem posso dizer. Aqui entre nós. Entre mentes, entretanto, entretendo, entendendo que entre eu e mim, entre nós dois e vocês. Entre! Ainda que seja a porta de saída, entre sem bater.


Pedro Bial

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Maturidade


A vida vai passando,
dias e noites..
Vamos vivendo cada minuto
movidos pelos pequenos casos e acasos
Chega um dia...
em que vc começa a perceber que mudou.
Aquela paixão avassaladora
deu lugar a uma calmaria...
Seu corpo já não clama por desejos...
sua alma , outrora inquieta...
agora repousa nas tardes
Noites insones, antes embaladas por pensamentos ardentes...
hoje se consome em detalhes domesticos.
Falta glamour
Falta desejos
é a maturidade...

Luciete Valente

domingo, 23 de novembro de 2014

Nenhum amor escapa impune


Deixa-me perguntar se te
pareço tão assustado assim. 

Não me sinto deslocado, talvez curioso, mas
nem surpreso. Algo em ti me puxa
sempre ao sentimento, mesmo antes de
te conhecer, lembras-te, uma propensão para te tratar bem, cuidar, vulnerabilizar os meus modos, recusar admitir que também eu sou capaz de crueldades quotidianas e
impunes. Queria conversar contigo
sobre o Nelson, que foi ver as coisas a
arder fotografando a própria
pele. Queria falar-te da Isabel e de como
choramos juntos, muito maricas, quando
nos correm mal estes amores ou, pior, a
nossa amizade. Esta noite sonhei contigo e
achei graça dizer-te que cheirava mal
na nossa cama. Que me incomodou a luz a entrar pela persiana por fechar. Que ouvi com dor o orgasmo da vizinha de baixo.
Queria que soubesses que também eu
poderia ter ardido para o Nelson
fotografar. Queria que soubesses que
também poderia parar de chorar pela
Isabel. Queria que soubesses que o faria
exclusivamente para arruinar o meu coração, se fosse a tua vontade e com isso te deixasse em paz. Faria qualquer coisa, ainda que quisesse morrer a seguir, faria qualquer coisa que, por um instante, te pusesse
a pensar em mim.

Valter Hugo Mãe

sábado, 22 de novembro de 2014

A Mulher que Passa


Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!

Oh! Como és linda, mulher que passas
que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pêlos leves são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Porque me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontrava se te perdias?

Por que não voltas, mulher que passa?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida
Para o que sofro não ser desgraça?

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!

No santo nome do teu martírio
Do teu martírio que nunca cessa
Meu Deus, eu quero, quero depressa
A minha amada mulher que passa!

Que fica e passa, que pacifica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como a cortiça
E tem raízes como a fumaça.

Vinicius de Moraes

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Quando


Quando você me toca,
Eu sinto o coração bater...
Acelerado, idiota,
Querendo te amar também.
Quando você me abraça,
Eu fico sem saber o que faço;
Fico gelado e quente,
Ardendo de frio e calor...
Quando você beija,
Eu vou para as estrelas;
Morro de amor e paixão,
Grito, ou fico calado,
Apaixonado!
Aprisionado no teu coração.
Quando você vai embora,
Morro de saudade;
Fico esperando, contando as horas,
Fora de circulação...
Choro e te procuro,
Na chuva, no sol, no escuro...
Na rua, atrás do muro;
Na lua e em qualquer lugar.
Sofro com tua ausência,
Fico alucinado!
Calado e chateado,
Aborrecido e tristonho;
Sonho mesmo acordado
E não sei o que fazer...
Faço tantas tolices;
Fico sem cabeça e sem chão.
Não me abandonas nunca,
Fica aqui ao meu lado,
Prenda-me em tuas mãos;
Faça de mim a paixão.


Roberto Corazza

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Boneca de feltro


A boneca de feltro
parece assustada com o próximo milênio.
Quem a aninhará nos braços
com seus olhos de medo e retrós?

O signo da boneca é frágil
mais frágil que o de pássaro.
Confia. Assim passiva
o vento brincará contigo
franzirá teu avental
dirá coisas que entendes
desde a aurora das coisas:
foste um caroço de manga
uma forma de nuvem
ou um galho com braços
de ameixeira no quintal.

Não temas. Solta o
corpo de feltro. Assim.
Para ser embalada nos braços
da menina que houver.

Dora Ferreira da Silva

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Esta noite...esta chuva...


Esta noite... esta chuva... estas reticências. Sei lá. Quem seria capaz de abrir o peito e mostrar a ferida? De dizer o nome? De lembrar, sequer lembrar, o rosto? Quem seria capaz de contar a história? De chamar o maior amigo, ou melhor, o inimigo, e dizer: — Estou me sentindo assim, assim, assim... A humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre. Mas não sabe onde estão as mãos, nem os deuses. E, quando souber, vai achar que as mãos e os deuses são de mentira. Os olhos de todos estarão cheios de medo, os olhos das jovens raparigas, os olhos, os braços, o ventre e as pernas das jovens raparigas, receosos de pagar com os que fazeres do sexo. Nesta noite, com esta chuva, as jovens raparigas não são importantes. Apenas uma tem importância. Mas quem seria de todo livre e descuidado, a ponto de dizer o seu nome? De pensar o seu nome? Você diria em público o nome da Amada? E suportaria ouvi-lo? Não, não; o nome dela, em sua boca ou na dos outros, é tão proibido como sua nudez (dela). Não há diferença. E por que você não se transforma no homem banal, que se encharca de álcool, para apregoar a desdita? Seria mais fácil. Talvez alguém lhe chamasse de porco e você revidasse com um soco no rosto, um só rosto, de todo o Gênero Humano. Viria a polícia, que simplifica tudo, generalizando. E tudo se transformaria em notícia: "Preso o alcoólatra, quando injuriava e agredia a Família Brasileira, na pessoa de um sócio do Country". Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das escolhas seria desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em combate, é burlesca. Uma pergunta, que não tem nada a ver com o corpo desta canção. Quem saberia discriminar o ódio do amor? Ninguém. Os psicologistas e analistas têm perdido um tempo enorme. Ontem à noite, voltando para casa, senti-me espectador de mim mesmo. E confesso que, pela primeira vez, não achei a menor graça. Saíra, pela primeira vez, de óculos e o porteiro do edifício me recebeu com esta agradável pergunta: — Que é que houve? O senhor está mais velho? Tirei os óculos e, fitando-o, esperei as desculpas. Mas o homem continuou: — O que é que houve? De ontem para cá, o senhor envelheceu. Tinha pensado que, sem os óculos... Não estou escrevendo para ninguém gostar ou, ao menos, entender. Estou escrevendo, simplesmente, e isto me supre: contrabalança, quando nada. Esta noite, esta chuva — e poderia escrever as coisas mais alegres, esta noite. Neruda, coitado, as mais tristes. Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida.

Antonio Maria

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Um novo tempo


E de repente, nada mais que de repente...
Acordei de um sonho,
Sedento!
Desperto em meu travesseiro,
Sentindo um doce cheiro;
Um vento...
Um perfume sem igual!
Abro os olhos e vejo
Meu corpo em desejos,
Anseios e emoção...
Meu coração disparado,
Meu peito inflado!
A boca querendo mais...
Tremendo e gelado!
Quente, da cabeça aos pés,
Suando...
Te amando e sendo feliz.
Ah, minha doce ventura!
Oh, manjar de doçura!
Mais nada me faltará...
O dia amanheceu,
Um novo tempo aconteceu;
O amor está em mim,
Em ti,
Em nós!
Estamos a sós...

Roberto Corazza

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Mimosa boca errante


Mimosa boca errante
à superfície até achar o ponto
em que te apraz colher o fruto em fogo
que não será comido mas fruído
até se lhe esgotar o sumo cálido
e ele deixar-te, ou o deixares, flácido,
mas rorejando a baba de delícias
que fruto e boca se permitem, dádiva.

Boca mimosa e sábia,
impaciente de sugar e clausurar
inteiro, em ti, o talo rígido
mas varado de gozo ao confinar-se
no limitado espaço que ofereces
a seu volume e jato apaixonados
como podes tornar-te, assim aberta,
recurvo céu infindo e sepultura?

Mimosa boca e santa,
que devagar vais desfolhando a líquida
espuma do prazer em rito mudo,
lenta-lambente-lambilusamente
ligada à forma ereta qual se fossem
a boca o próprio fruto, e o fruto a boca,
oh chega, chega, chega de beber-me,
de matar-me, e, na morte, de viver-me.

Já sei a eternidade: é puro orgasmo.




Carlos Drummond de Andrade

domingo, 31 de agosto de 2014

Não sei quem sou...


Não me conheço ainda completamente...

Sou um mistério totalmente previsível...

Sou desvendada...
Pelo o que de mim...ainda não foi revelado...

Um emaranhado de contradições...Hormonais...
Femininas...
Alucinadas...e criativas realidades virtuais...

Me observo por horas...
E ainda não me compreendo...

Meu ciúme é impulsivo...
Grito...
Desafio...
Provoco...
Desejo...
E gosto de confundir...

Mas sei que ainda sou criança
E me entedio com o que ainda não sei de mim...

Preciso me surpreender...

Tenho certeza...
Que vou dar gargalhadas
Quando me encontrar...

Brincando de pic...

Onde quer que eu tenha me escondido.

Marisa Fernandes

sábado, 30 de agosto de 2014

Doenças


Muitas doenças que as pessoas têm são poemas presos
abscessos tumores nódulos pedras são palavras
calcificadas
poemas sem vazão
mesmo cravos pretos espinhas cabelo encravado
prisão de ventre poderia um dia ter sido poema
pessoas às vezes adoecem de gostar de palavra presa
palavra boa é palavra líquida
escorrendo em estado de lágrima
lágrima é dor derretida
dor endurecida é tumor
lágrima é alegria derretida
alegria endurecida é tumor
lágrima é raiva derretida
raiva endurecida é tumor
lágrima é pessoa derretida
pessoa endurecida é tumor
tempo endurecido é tumor
tempo derretido é poema
palavra suor é melhor do que palavra cravo
que é melhor do que palavra catarro
que é melhor do que palavra bílis
que é melhor do que palavra ferida
que é melhor do que palavra nódulo
que nem chega perto da palavra tumores internos
palavra lágrima é melhor
palavra é melhor
é melhor poema

Viviane Mosé

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Ternura


Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

David Mourão-Ferreira,

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Não Tenho Pressa


Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra.
Não; não sei ter pressa.
Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega -
Nem um centímetro mais longe.
Toco só onde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E vivemos vadios da nossa realidade.
E estamos sempre fora dela porque estamos aqui.

Alberto Caeiro

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Os homens desejam as mulheres que não existem.


Está na moda - muitas mulheres ficam em acrobáticas posições ginecológicas para raspar os pêlos pubianos nos salões de beleza. Ficam penduradas em paus-de-arara e, depois, saem felizes com apenas um canteirinho de cabelos, como um jardinzinho estreito, a vereda indicativa de um desejo inofensivo e não mais as agressivas florestas que podem nos assustar. Parecem uns bigodinhos verticais que (oh, céus!...) me fazem pensar em... Hitler. Silicone, pêlos dourados, bumbuns malhados, tudo para agradar aos consumidores do mercado sexual. Olho as revistas povoadas de mulheres lindas... e sinto uma leve depressão, me sinto mais só, diante de tanta oferta impossível. Vejo que no Brasil o feminismo se vulgarizou numa liberdade de "objetos", produziu mulheres livres como coisas, livres como produtos perfeitos para o prazer. A concorrência é grande para um mercado com poucos consumidores, pois há muito mais mulher que homens na praça (e-mails indignados virão...) Talvez este artigo seja moralista, talvez as uvas da inveja estejam verdes, mas eu olho as revistas de mulher nua e só vejo paisagens; não vejo pessoas com defeitos, medos. Só vejo meninas oferecendo a doçura total, todas competindo no mercado, em contorções eróticas desesperadas porque não têm mais o que mostrar. Nunca as mulheres foram tão nuas no Brasil; já expuseram o corpo todo, mucosas, vagina, ânus. O que falta? Órgãos internos? Que querem essas mulheres? Querem acabar com nossos lares? Querem nos humilhar com sua beleza inconquistável? Muitas têm boquinhas tímidas, algumas sugerem um susto de virgens, outras fazem cara de zangadas, ferozes gatas, mas todas nos olham dentro dos olhos como se dissessem: "Venham... eu estou sempre pronta, sempre alegre, sempre excitada, eu independo de carícias, de romance!..." Sugerem uma mistura de menina com vampira, de doçura com loucura e todas ostentam uma falsa tesão devoradora. Elas querem dinheiro, claro, marido, lugar social, respeito, mas posam como imaginam que os homens as querem. Ostentam um desejo que não têm e posam como se fossem apenas corpos sem vida interior, de modo a não incomodar com chateações os homens que as consomem. A pessoa delas não tem mais um corpo; o corpo é que tem uma pessoa, frágil, tênue, morando dentro dele. Mas, que nos prometem essas mulheres virtuais? Um orgasmo infinito? Elas figuram ser odaliscas de um paraíso de mercado, último andar de uma torre que os homens atingiriam depois de suas Ferraris, seus Armanis, ouros e sucesso; elas são o coroamento de um narcisismo yuppie, são as 11 mil virgens de um paraíso para executivos. E o problema continua: como abordar mulheres que parecem paisagens? Outro dia vi a modelo Daniela Cicarelli na TV. Vocês já viram essa moça? É a coisa mais linda do mundo, tem uma esfuziante simpatia, risonha, democrática, perfeita, a imensa boca rósea, os "olhos de esmeralda nadando em leite" (quem escreveu isso?), cabelos de ouro seco, seios bíblicos, como uma imensa flor de prazeres. Olho-a de minha solidão e me pergunto: "Onde está a Daniela no meio desses tesouros perfeitos? Onde está ela?" Ela deve ficar perplexa diante da própria beleza, aprisionada em seu destino de sedutora, talvez até com um vago ciúme de seu próprio corpo. Daniela é tão linda que tenho vontade de dizer: "Seja feia..." Queremos percorrer as mulheres virtuais, visitá-las, mas, como conversar com elas? Com quem? Onde estão elas? Tanta oferta sexual me angustia, me dá a certeza de que nosso sexo é programado por outros, por indústrias masturbatórias, nos provocando desejo para me vender satisfação. É pela dificuldade de realizar esse sonho masculino que essas moças existem, realmente. Elas existem, para além do limbo gráfico das revistas. O contato com elas revela meninas inseguras, ou doces, espertas ou bobas mas, se elas pudessem expressar seus reais desejos, não estariam nas revistas sexy, pois não há mercado para mulheres amando maridos, cozinhando felizes, aspirando por namoros ternos. Nas revistas, são tão perfeitas que parecem dispensar parceiros, estão tão nuas que parecem namoradas de si mesmas. Mas, na verdade, elas querem amar e ser amadas, embora tenham de ralar nos haréns virtuais inventados pelos machos. Elas têm de fingir que não são reais, pois ninguém quer ser real hoje em dia - foi uma decepção quando a Tiazinha se revelou ótima dona de casa na Casa dos Artistas, limpando tudo numa faxina compulsiva. Infelizmente, é impossível tê-las, porque, na tecnologia da gostosura, elas se artificializam cada vez mais, como carros de luxo se aperfeiçoando a cada ano. A cada mutação erótica, elas ficam mais inatingíveis no mundo real. Por isso, com a crise econômica, o grande sucesso são as meninas belas e saradas, enchendo os sites eróticos da internet ou nas saunas relax for men, essa réplica moderna dos haréns árabes. Essas lindas mulheres são pagas para não existir, pagas para serem um sonho impalpável, pagas para serem uma ilusão. Vi um anúncio de boneca inflável que sintetizava o desejo impossível do homem de mercado: ter mulheres que não existam... O anúncio tinha o slogan em baixo: "She needs no food nor stupid conversation." Essa é a utopia masculina: satisfação plena sem sofrimento ou realidade. A democracia de massas, mesclada ao subdesenvolvimento cultural, parece "libertar" as mulheres. Ilusão à toa. A "libertação da mulher" numa sociedade ignorante como a nossa deu nisso: superobjetos se pensando livres, mas aprisionadas numa exterioridade corporal que apenas esconde pobres meninas famintas de amor e dinheiro. A liberdade de mercado produziu um estranho e falso "mercado da liberdade". É isso aí. E ao fechar este texto, me assalta a dúvida: estou sendo hipócrita e com inveja do erotismo do século 21? Será que fui apenas barrado do baile?

Arnaldo Jabor

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Espanhol


Juro ter ouvido, entre suspiros fundos e lágrimas fundas, sons de castanholas envolvidos em brumas de sangue. Impressão ou sentimento engolido por aquelas fotografias sépias de lembranças guardadas nos primeiros anos de vida.

O que havia em seu pequeno quarto de mundo, avesso às tristezas de final de vida? Ninguém descobrira, talvez, porque tão trancado, se, agora há pouco, plantara seu mundo tão distante do chão empedrado onde brotara, para dançar, sobre uma mesa, um bailado espanhol ensopado de alegria. Nem descobririam filhos, netos, sobrinhos, parentes, amigos, desconhecidos, os porquês das tramelas no coração perto do fim.

Nesses dias de antes, lembravam, ninguém tinha sua destreza ao descarnar um animal, açougueiro de alma. Ninguém!, espalhavam a todos os ventos com a força do exagero. Ou sua extrema sutileza, quase um bisturi, ao manipular um canivete amolado em direção aos bagos de um cavalo ou outro que estivesse a ser capado. Esporas tingidas, limpava o suor no próprio sangue e invocava deuses. Parecia imolar com pena, parecia sentir a dor, mas sem dó.

Nesses dias de antes, lembravam ainda mais, ninguém desafiava o trabalho como um mouro, descendente de mouro, vindo de onde vieram os mouros, mouro enfim, raízes fincadas em um chão arenoso.

Além das orações do trabalho, cultivava a religião dos céus, longe dos templos e dos seus administradores. Rezava como crente, para dentro, cultivando o terreno do peito, os músculos e as carnes. E o silêncio. Também comemorava os resultados do trabalho, taças borradas de vinho e de paixão, os olhos atiçados na fogueira do futuro.

Por que, então, o lento fechar de janelas ao mundo, sentimentos recolhidos, ouvidos moucos ao vento que sopra manhoso na areia fina de uma terra quente, onde, agora há pouco, ele estourara balas de revólver, cacos de garrafas, estilhaços de silêncios, pedaços do céu?

Poucos tentaram e ninguém soube me explicar porque de embaixador da alegria, carteiro de felicidade, ele mudou, assumindo fantasmas a mim nunca apresentados, distribuindo a poucos, quase nenhuns, segredos, mistérios, pequenos acordos ou fuxicos de vida.

De festivo passou a ser motivo da festa. Alvo da sanha. Inclusive de pequenos infames, que nada ou quase nada sabiam de sua vida, algozes que vieram depois cobrar a felicidade que ele havia proporcionado a seus avós, pais ou a ele mesmo, aos seus, a desconhecidos. Berravam apelidos, as maritacas pintadas de anuns. E ele arrastava o resto de vida pelas ruas, fechado em seu quarto de mundo, à espera da volta, quem sabe, aos braços da mulher, com cheiro das videiras e das oliveiras em seu colo, camomilas esparramadas em algodão das batas.

Enchia os bolsos de bitucas, cigarros murchos, para, talvez, tragar o resto da brisa que soprava no mar que o trouxe de outras costas, bruto sonhador de aventuras. Se ainda pudesse, além de queimar os lábios com as brasas, queimá-los com o vinho da amada, casa de saciar a fome de outras labaredas, expurgar as dores e benzer a vida de esperanças...

Seus cabelos renascentistas, impróprios para um analfabeto de letras enterradas em sua origem no século XV, cresceram em tufos, espalhados pelas sobrancelhas, ouvidos, cabeça, braços, colhidos pelo tempo como animal no matadouro.
Nada de terno. Animal, esfaqueavam em desprezo as maritacas. O viver, espalhado em dezenas, como os fios de seu cabelo, virava cinzas nesses dias de antes, nos muros, nos bares, nas calçadas, no abandono, no cheiro acre de urina no quarto apertado de solidão, sem explicações.

Juro ter ouvido sons roucos de tourada, bois chifrando o toureiro e ele se esquivando, olé, um bailado no tablado de uma mesa ou na sujeira de um chão nu, copos partidos ao meio, cheiro de pólvora, olé, saliva pastosa no canto da boca, um poema despetalado, flores amarelas e vermelhas e janelas se fechando, para sempre, no pedaço rubro da tarde.


Nilson Monteiro

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A Sofreguidão de um Instante


Tudo renegarei menos o afeto,
e trago um ceptro e uma coroa,
o primeiro de ferro, a segunda de urze,
para ser o rei efémero
desse amor único e breve
que se dilui em partidas
e se fragmenta em perguntas
iguais às das amantes
que a claridade atordoa e converte.
Deixa-me reinar em ti
o tempo apenas de um relâmpago
a incendiar a erva seca dos cumes.
E se tiver que montar guarda,
que seja em redor do teu sono,
num êxtase de lábios sobre a relva,
num delírio de beijos sobre o ventre,
num assombro de dedos sob a roupa.
Eu estava morto e não sabia, sabes,
que há um tempo dentro deste tempo
para renascermos com os corais
e sermos eternos na sofreguidão de um instante.

José Jorge Letria,

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Ideário


A palavra passa
o gesto fica
o carro passa
o pé fica
o foguete passa
a estrela fica
o adeus passa
a mão fica
o abraço passa
o calor fica
a guitarra passa
a música fica
a bola passa
o jogo fica
o cabelo passa
a cabeça fica
os navios passam
o mar fica
os deuses passam
o homem-deus fica.

Ieda Estergilda de Abreu

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Definitivo


Definitivo, como tudo o que é simples.
Nossa dor não advém das coisas vividas,
mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.

Sofremos por quê? Porque automaticamente esquecemos
o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções
irrealizadas, por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado
do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter
tido junto e não tivemos,por todos os shows e livros e silêncios que
gostaríamos de ter compartilhado,
e não compartilhamos.
Por todos os beijos cancelados, pela eternidade.

Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e paga pouco, mas por todas
as horas livres que deixamos de ter para ir ao cinema, para conversar com um
amigo, para nadar, para namorar.

Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco, mas por todos os
momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela nossas mais profundas
angústias se ela estivesse interessada em nos compreender.

Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela euforia sufocada.

Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo
confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam,
todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar.

Por que sofremos tanto por amor?
O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer por termos conhecido uma
pessoa tão bacana, que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez
companhia por um tempo razoável,um tempo feliz.

Como aliviar a dor do que não foi vivido? A resposta é simples como um
verso:

Se iludindo menos e vivendo mais!!!
A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida
está no amor que não damos, nas forças que não usamos,
na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do
sofrimento,perdemos também a felicidade.

A dor é inevitável.
O sofrimento é opcional...

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

A maquina do mundo


E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas.

(Trecho de A Máquina do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade).

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Quanto, Quanto me Queres?


Quanto, quanto me queres? - perguntaste
Olhando para mim mas distraída;
E quando nos meus olhos te encontraste,
Eu vi nos teus a luz da minha vida.

Nas tuas mãos, as minhas, apertaste.
Olhando para mim como vencida,
«...quanto, quanto...» - de novo murmuraste
E a tua boca deu-se-me rendida!

Os nossos beijos longos e anciosos,
Trocavam-se frementes! - Ah! ninguem
Sabe beijar melhor que os amorosos!

Quanto te quero?! - Eu posso lá dizer!...
- Um grande amor só se avalia bem
Depois de se perder.

António Botto

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Precisa-se


Precisa-se:
De uma gota de amor
pra mudar o mundo,
uma gota de bem querer
pra fazer um casal,
uma gota de honestidade
pra formar uma parceria,
uma gota de carinho
pra se criar um animal,
uma gota de orvalho
pra germinar uma semente,
uma gota de sensualidade
pra despertar uma paixão,
uma gota de camaradagem
pra se criar amigos,
e um rio
para conservá-los.

Luciete Valente

domingo, 17 de agosto de 2014

Invicto


Do avesso desta noite que me encobre,
Preta como a cova, do começo ao fim,
Eu agradeço a quaisquer deuses que existam,
Pela minha alma inconquistável.

Na garra cruel desta circunstância,
Não estremeci, nem gritei em voz alta.
Sob a pancada do acaso,
Minha cabeça está ensanguentada, mas não curvada.

Além deste lugar de ira e lágrimas
Avulta apenas o horror das sombras.
E apesar da ameaça dos anos,
Encontra-me, e me encontrará destemido.

Não importa quão estreito o portal,
Quão carregada de punições a lista,
Sou o mestre do meu destino:
Sou o capitão da minha alma.

(Tradução livre)
William Ernest Henley

sábado, 16 de agosto de 2014

Estações da vida


Chega um tempo
em que mais fugazes
são as primaveras.
Chega um tempo,
que que os invernos
da alma são longos..
Chega um tempo
em que os amigos
são outonais...
e às vezes seus frutos
não mais nos alimentam...
Chega um tempo...
em que as andorinhas
não fazem mais verão...
E nesse tempo...
o que nos conforta
é a lembrança do que fomos...

Luciete Valente

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Via Láctea


“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto…

E conversamos toda a noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.”

Olavo Bilac

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Diz o Meu Nome


Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem
os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça.

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno.

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci.

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos.

No úmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome.

Mia Couto

quinta-feira, 31 de julho de 2014

A Cor da Tua Alma


Enquanto eu te beijo, o seu rumor
nos dá a árvore, que se agita ao sol de ouro
que o sol lhe dá ao fugir, fugaz tesouro
da árvore que é a árvore de meu amor.

Não é fulgor, não é ardor, não é primor
o que me dá de ti o que te adoro,
com a luz que se afasta; é o ouro, o ouro,
é o ouro feito sombra: a tua cor.

A cor de tua alma; pois teus olhos
vão-se tornando nela, e à medida
que o sol troca por seus rubros seus ouros,
e tu te fazes pálida e fundida,
sai o ouro feito tu de teus dois olhos
que me são paz, fé, sol: a minha vida!

Juan Ramón Jiménez

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Receita para lavar palavra suja


Mergulhar a palavra suja em água sanitária.
Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
Algumas palavras quando alvejadas ao sol
adquirem consistência de certeza. Por exemplo a palavra vida.
Existem outras, e a palavra amor é uma delas, que são muito encardidas pelo uso, o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra, depois enxaguar em água corrente.
São poucas as que resistem a esses cuidados, mas existem aquelas.
Dizem que limão e sal tira sujeira difícil, mas nada.
Toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão.
Agora nunca vi palavra tão suja como perda.
Perda e morte na medida em que são alvejadas soltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de amargura,que é capaz de esvaziar o vigor da língua.
O aconselhado nesse caso é mantê-las sempre de molho em um amaciante de boa qualidade. Agora, se o que você quer é somente aliviar as palavras do uso diário, pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.
O perigo neste caso é misturar palavras que mancham no contato umas com as outras.
Culpa, por exemplo, a culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha.
Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo, já que desejo, sendo uma palavra intensa, quase agressiva, pode, o que não é inevitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade.
Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras sob o risco de perderem o sentido.
A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva, produz uma oleosidade que dá vigor aos sons.
Muito importante na arte de lavar palavras
é saber reconhecer uma palavra limpa.
Conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos, que passeie pela expressão dos seus sentidos.
À noite, permita que se deite, não a seu lado mas sobre seu corpo.
Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne, prolifera em toda sua possibilidade.
Se puder suportar essa convivência até não mais perceber a presença dela, então você tem uma palavra limpa.
Uma palavra LIMPA é uma palavra possível.

Viviane Mosé

terça-feira, 29 de julho de 2014

Canção do exílio


Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Gonçalves Dias

segunda-feira, 28 de julho de 2014

AMOR... O Interminável Aprendizado


Criança, ele pensava: amor, coisa que os adultos sabem. Via-os aos pares namorando nos portões enluarados se entrebuscando numa aflição feliz de mãos na folhagem das anáguas. Via-os noivos se comprometendo à luz da sala ante a família, ante as mobílias; via-os casados, um ancorado no corpo do outro, e pensava: amor, coisa-para-depois, um depois-adulto-aprendizado. Se enganava. Se enganava porque o aprendizado de amor não tem começo nem é privilégio aos adultos reservado. Sim, o amor é um interminável aprendizado. Por isto se enganava enquanto olhava com os colegas, de dentro dos arbustos do jardim, os casais que nos portões se amavam. Sim, se pesquisavam numa prospecção de veios e grutas, num desdobramento de noturnos mapas seguindo o astrolábio dos luares, mas nem por isto se encontravam. E quando algum amante desaparecia ou se afastava, não era porque estava saciado. Isto aprenderia depois. É que fora buscar outro amor, a busca recomeçara, pois a fome de amor não sabia nunca, como ali já não se saciara. De fato, reparando nos vizinhos, podia observar. Mesmo os casados, atrás da aparente tranqüilidade, continuavam inquietos. Alguns eram mais indiscretos. A vizinha casada deu para namorar. Aquele que era um crente fiel, sempre na igreja, um dia jogou tudo para cima e amigou-se com uma jovem. E a mulher que morava em frente da farmácia, tão doméstica e feliz, de repente fugiu com um boêmio, largando marido e filhos. Então, constatou, de novo se enganara. Os adultos, mesmo os casados, embora pareçam um porto onde as naus já atracaram, os adultos, mesmo os casados, que parecem arbustos cujas raízes já se entrançaram, eles também não sabem, estão no meio da viagem, e só eles sabem quantas tempestades enfrentaram e quantas vezes naufragaram. Depois de folhear um, dez, centenas de corpos avulsos tentando o amor verbalizar, entrou numa biblioteca. Ali estavam as grandes paixões. Os poetas e novelistas deveriam saber das coisas. Julietas se debruçavam apunhaladas sobre o corpo morto dos Romeus, Tristãos e Isoldas tomavam o filtro do amor e ficavam condenados à traição daqueles que mais amavam e sem poderem realizar o amor. O amor se procurava. E se encontrando, desesperava, se afastava, desencontrava. Então, pensou: há o amor, há o desejo e há a paixão. O desejo é assim: quer imediata e pronta realização. É indistinto. Por alguém que, de repente, se ilumina nas taças de uma festa, por alguém que de repente dobra a perna de uma maneira irresistivelmente feminina. Já a paixão é outra coisa. O desejo não é nada pessoal. A paixão é um vendaval. Funde um no outro, é egoísta e, em muitos casos, fatal. O amor soma desejo e paixão, é a arte das artes, é arte final. Mas reparou: amor às vezes coincide com a paixão, às vezes não. Amor às vezes coincide com o desejo, às vezes não. Amor às vezes coincide com o casamento, às vezes não. E mais complicado ainda: amor às vezes coincide com o amor, às vezes não. Absurdo. Como pode o amor não coincidir consigo mesmo? Adolescente amava de um jeito. Adulto amava melhormente de outro. Quando viesse a velhice, como amaria finalmente? Há um amor dos vinte, um amor dos cinqüenta e outro dos oitenta? Coisa de demente. Não era só a estória e as estórias do seu amor. Na história universal do amor, amou-se sempre diferentemente, embora parecesse ser sempre o mesmo amor de antigamente. Estava sempre perplexo. Olhava para os outros, olhava para si mesmo ensimesmado. Não havia jeito. O amor era o mesmo e sempre diferenciado. O amor se aprendia sempre, mas do amor não terminava nunca o aprendizado. Optou por aceitar a sua ignorância. Em matéria de amor, escolar, era um repetente conformado. E na escola do amor declarou-se eternamente matriculado.

Affonso Romano de Sant'Anna