sábado, 19 de julho de 2014

Silêncio de água



O balde espatifou seu rosto no espelho líquido do poço. Só me lembro que queria colar os pedaços da lâmina enquanto a corda girava, molhando cabelos, pela roldana, afogando-se no fundo, tesa. A manivela destrambelhada. Na volta, de corpo cheio, em balanço baço, sereno espirrado, o balde escapava do seu porto e trazia sua fotografia em gelatina, enquanto, no terreiro, voava a imaginação em volteios coloridos de pipas.

Um buraco, fundo, de nostalgia, ficou cavado tão puro, tão lerdo como a sépia que não quer ser apagada. Seiva, sumo, cheiro de alegria grudado na alma, pingando terra adentro feito cristais derretidos. Quando este mesmo cheiro escapa de uma torneira, veia de um poço de fantasia, espalha saudades líquidas.

Procuro a infância, relâmpago de quintal, vento, chuva espirrando a lama roxa na barra enrubescida das casas, janelas enlouquecidas, o terreiro, as folhas, as flores, o mato, a alegria de tramela aberta e o poço. Quieto, fechado, calado, o balde, âncora içada, pendurado para o som metálico dos pingos d’água. Uma rã salta, inquieta, feito Bashô, para o breu.

Da torneira vem o gosto inodoro, limpo, claro, insípido, moderno, incolor, livre para vazar entre os dedos, entre os dentes, pelo corpo, pela alma. Tento recompor seu rosto. Dele nascem duendes, flores, sabiás, riachos, pinheiros, periquitos, carvalhos, colerinhas, eucaliptos, pardais, mágicos, palhaços, o barulho da chuva...

Escuto o machado cortar a carne da madeira e sonho a paz do chá da tarde, enquanto a chuva brinca pelas telhas e tamborila em latas de sonho. A água escorre leve do chuveiro e faz a mesma lâmina líquida do fundo do poço no ladrilho gelado. Não há o seu rosto. Mas, percebo, escuto uma canção orvalhada, mansa, carinhosa. Liberta como crinas de cavalos ao vento. E, neblina fosca nos olhos, vejo o balde espatifar a água plena de mistérios no fundo d’alma.

No copo, indiferente aos meus sonhos, ela, cristalina, beija-me os lábios e lava pensamentos. Despenca espírito adentro, tateando paredes lúdicas, percorrendo vielas e as barrancas de um rio preguiçoso. Procuro seu rosto. E ele escapa, feito a bruma da manhã.

Nilson Monteiro

(Crônica publicada na edição 172 de julho/agosto da Revista Comércio da Associação Comercial do Paraná)

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