sexta-feira, 13 de abril de 2012

Talento não é sabedoria



Deixa-me dizer-te francamente o juízo que eu formo do homem transcendente em génio, em estro, em fogo, em originalidade, finalmente em tudo isso que se inveja, que se ama, e que se detesta, muitas vezes. 
O homem de talento é sempre um mau homem. 
Alguns conheço eu que o mundo proclama virtuosos e sábios. 
Deixá-los proclamar. 
O talento não é sabedoria. 
Sabedoria é o trabalho incessante do espírito sobre a ciência. 
O talento é a vibração convulsiva de espírito, a originalidade inventiva e rebelde à autoridade, a viagem extática pelas regiões incógnitas da ideia. 
Agostinho, Fénelon, Madame de Staël e Bentham são sabedorias. 
Lutero, Ninon de Lenclos, Voltaire e Byron são talentos.

Compara as vicissitudes dessas duas mulheres e os serviços prestados à humanidade por esses homens, e terás encontrado o antagonismo social em que lutam o talento com a sabedoria. 
Porque é mau o homem de talento ? 
Essa bela flor porque tem no seio um espinho envenenado ? Essa esplêndida taça de brilhantes e ouro porque é que contém o fel, que abrasa os lábios de quem a toca ? 
Aqui tens um tema para trabalhos superiores à cabeça de uma mulher, ainda mesmo reforçada por duas dúzias de cabeças académicas ! 
Lembra-me ouvir dizer a um doido que sofria por ter talento. 
Pedi-lhe as circunstâncias do seu martírio sublime, e respondeu-me o seguinte com a mais profunda convicção, e a mais tocante solenidade filosófica :
 os talentos são raros, e os estúpidos são muitos. 
Os estúpidos guerreiam barbaramente o talento : 
são os vândalos do mundo espiritual. 
O talento não tem partido nesta peleja desigual. 
Foge, dispara na retirada um tiroteio de sarcasmos pungentes, e, por fim, isola-se, segrega-se do contacto do mundo, e curte em silêncio aquele fel de vingança, que, mais cedo ou mais tarde, cospe na cara de algum inimigo, que encontra desviado do corpo do exército. 
Aí tem a razão por que o homem de talento é perigoso na sociedade. 
O ódio inspira-lhe a eloquência da traição.

Camilo Castelo Branco, in 'Coisas que Só eu Sei'

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